Butcher’s Crossing

Stoner veio na esteira de uma crítica e li-o com entusiasmo crescente. A história de um professor universitário desencantado com o casamento, a carreira e a vida apanhou-me desprevenido e a partir daí, desenrolei, como quase sempre acontece, as pesquisas sobre o autor, vida e obra, tentando perceber onde traçar a fronteira entre ficção e realidade.

John Williams escreve com a leveza e a profundidade que muitos aspirantes a escritores almejam. É tão fácil envolver-me na sua narrativa que a meio da leitura dou por mim a parar e dizer para mim, num pensamento/sentimento quase tão audível como se saísse da minha voz Como é possível escrever tão bem?! 

Guardei Butcher’s Crossing durante anos (talvez), para o saborear com algum espaçamento em relação à estreia (de Stoner). A única razão porque me atirei a ele está no autor, pois a história de quatro homens que partem por uma região inóspita para caçar búfalos no Colorado do séc. XIX é tudo menos apelativa aos meus gostos.

Como é que numa história em que pouco ou nada acontece, tanto pode ser transmitido sobre a ambição e a natureza humana? É o génio da escrita de John Williams quem torna Butcher’s Crossing numa obra-prima. São as paisagens do Oeste e as Montanhas Rochosas que imaginamos, as condições extremas, o sofrimento e a superação, a sobrevivência e a resistência, mental, física, total, o Homem perante a fúria dos elementos para, no fim, compreender que é ele próprio o seu maior inimigo.

Uma pessoa nasce, é amamentada na mentira, é desmamada na mentira e aprende mentiras mais elaboradas na escola. Vive toda a vida no meio da mentira e mais tarde, porventura quando está prestes a morrer, descobre que não há nada, nada a não ser ela própria e o que podia ter feito. Só que não o fez, porque as mentiras lhe disseram que havia outra coisa. Nessa altura percebe que podia ter todo o mundo, porque é a única pessoa que sabe o segredo; só que então é tarde demais. Já é demasiado velha.

Tenho Augustus, o quarto e último livro de John Williams a envelhecer na prateleira da estante, aguardando o momento da colheita. Depois dele não haverá outro livro do autor para desfrutar; somente revisitar os três, então já lidos (existe uma quarta obra, Nothing But The Night, a primeira, não editada em português e considerada menor, de qualquer forma, se vier uma tradução, cá estarei).

Não tenho ideia de alguma vez ter atrasado uma leitura, como se de uma garrafa de Barca Velha se tratasse. Porque um bom livro é como um bom vinho: tem cheiro e textura, corpo e degustação, envelhece connosco e fica em nós muito para além dos últimos vapores. De resto, uma leitura é mais solitária, mas é uma solidão acompanhada.

Claro que existe a costumeira elevação de expectativas de que padeço, doença crónica para a qual ainda não encontrei cura ou antídoto. Só que os livros são tão diferentes entre eles que talvez com a leitura tamanha exigência se desvaneça e, tal como aconteceu com Butcher’s Crossing, facilmente me seja estendida a passadeira de modo a entrar naquele mundo maravilhoso.

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