Nunca gostei de cor-de-rosa. Nem quando era menina, achava dum desinteresse imenso, e tendo opção, escolhia sempre o azul, à laia de demarcação. Tive um estojo amoroso, do género da Hello Kitty, mas em azul, quadradinhos vichy e bonecada a preceito, e recordo-me que a menina bonita da catequese tinha um igual, mas num óbvio rosa. Tão previsível. Tenho associações muito estranhas à cor, eu sei, mas não há segundas opções para primeiras impressões. Lembra-me aquelas americanas enormes em vestidos-crepe de casamento e chapéus de rosa berrante, a que alguém sabiamente deu o nome de shocking. Se alguém então me diz que vai ter uma menina e portanto – portanto…. – tem que decorar o quarto e comprar roupa desta cor, antevejo muita monotonia vida fora. E obviamente, como não podia deixar de ser, lembra-me também aqueles filmes de adolescentes, as meninas populares e seus caprichos.
Chocante é o facto de que o bullying que vemos nos filmes de adolescentes, perpetrado pela menina-rica, coadjuvada por duas ou três que a seguem cegamente, com motivações diversas mas sempre pressupondo a aceitação pública, passa para a vida real. Desengane-se quem possa pensar que se trata de coisinhas de namorados ou de convites para festas ou de questões de roupa ser ou não de marca. O facto de a escola ter fechado para a maioria dos alunos, pelo menos para os mais novos, e portanto a família estar mais em contacto, permite que certos factos sejam analisados numa perspectiva mais profunda.
Apresento-vos o João: tem 12 anos, baixinho e gordinho, gostos diferenciados em desenhos animados e livros, aluno regular, estuda numa escola em Lisboa. Agora está em casa, e num destes dias, em profundo aborrecimento, resolveu sabotar a aula de Português, dada através duma das plataformas correntes. A forma que encontrou de o fazer, foi tão só disparatar no chat da mesma, escrevendo parvoíces, em crescendo, na medida em que os colegas respondiam com risinhos, incentivando o desatino. A professora terminou a aula e entrou em contacto com os pais do João: “que não se admitia”, “que não podia prejudicar-se a si e aos colegas com esta atitude sem sentido”, “que não pode desrespeitar a professora”. Absolutamente verdade. Certíssimo.
Todos nós já fomos adolescentes, e ainda há pouco tempo me lembrei dum colega, que em plena secundária resolveu testar os limites da sua segurança física e da capacidade mental da professora, num 2º andar com janelas rotativas, saindo para o exterior do edifício por uma e entrando por outra , até correr as 4 janelas da sala. Tínhamos 15 ou 16 anos, mas entre o medo e o riso, agradecemos aquela distracção. Como quando resolvemos, ainda na primária, levar desenhos e prendinhas à professora, na esperança de ela perder meia-hora a vê-las e nos passar menos contas de dividir. Caiu em saco roto, inocentes de nós.
Quando uma destas situações ocorre, os pais, se são presentes e cuidadosos, param tudo e vão indagar do ocorrido. Além da conversa da praxe, indispensável e básica, redobraram a atenção a factos como o telemóvel, amizades e contactos. Quem convive com crianças ou adolescentes há muito que percebeu a sua extremada dependência dos telemóveis, em jogos, aplicações e chats. É habitual a criação de grupos de chat, inclusivos ou não, de diversas temáticas: aulas, trabalhos, playstation, conversa da treta. E de grupo em grupo, agora inclui-se fulano, agora bloqueia-se, agora diz-se mal deste, depois daquele, quando o visado não consta da lista, e agora és amigo, entras, agora já não e sais. E os pais do João encontraram mensagens enviadas por colegas do filho, em que o insultam, dizendo que este é burro, que estão a torcer para que ele chumbe e que possa, enfim, sair da turma. Além destas mensagens cobardes, há a atitude em contacto directo, manifestando um profundo desapreço, ignorando-o, ou mesmo dizendo que ninguém se importa com ele. E tal qual um filme de escola secundária americana, estes comportamentos foram tidos por alunos de notas de quatros e cincos, em aparentes melhores condições escolares, aqueles que à partida não têm qualquer razão válida para o fazer, e nem se sentir de alguma forma ameaçados. E muitas vezes, fora os brutos que proferem barbaridades em público, este posicionamento dos cobardes é mais requintado, uma vez que são habitualmente tidos como uns anjinhos, nos seus cabelos loiros, e afinal demonizam-se em mensagens pusilânimes. De muito baixo nível.
A vulgarização das tecnologias permitiu também o alargamento de exposição ao bullying. Se anteriormente alguém era gozado na escola, por ser alto, baixo, gordo, magro, usar óculos, aparelho dentário, ser feio ou bonito, enfim, ser diferente, o mesmo terminava ao chegar a casa. Hoje em dia, as agressões continuam fora de horas e quase sempre sem testemunhas. E se a criança ou adolescente não se manifesta de forma directa, partilhando com os pais ou outro adulto, temos que atentar nos comportamentos. Não me venham dizer que antes as pessoas eram gozadas mas que hoje são adultos e não lhes caíram as mãozinhas, é argumento que não merece o meu respeito. Um pouco como aqueles que levaram pancada de pau de colher, de cinto, estaladas e pontapés mas dizem, orgulhosos, que só se perderam as que caíram no chão, e que agora anda tudo muito sensível, são fraquinhos e vão ao psicólogo. Para mim isto só tem uma classificação: alguém que sofreu e é incapaz de aprender com isso, e passa o tratamento à próxima vítima, de forma absolutamente irracional.
Muitas vezes é necessário ir além do óbvio. Evidentemente que o comportamento do João não foi correcto. Claramente necessitou de ser corrigido, dado que ele próprio não estava a conseguir lidar de forma saudável com a pressão da toxicidade alheia, transpondo para o seu comportamento desalinhado os sentimentos que não soube integrar. Contudo, se uma criança ou um jovem tem comportamentos atípicos, afastando-se do habitual, é necessário aprofundar o tema, e ir além do ralhete, ou além da pura catalogação do comportamento como rufia, rebelde ou afins. Podem ser questões de integração, de necessidade de ser considerado, e nestas idades, em que “não há estrelas no céu”, há miúdos que, não conseguindo ser aceite pelo que é, sobretudo se se tem gostos diferentes ou se age de forma díspar, pode sentir-se tentado a enveredar pela parvoíce, procurando agradar pelo riso ou pelo desafio às estruturas. Sobretudo se não tem, por motivos de mudança de escola, turma, ou temperamento mais tímido, um grupo íntimo e coeso de amigos, que lhe assegure a pertença.
O João está a recuperar, no comportamento e nas notas. Afastado dos agressores, protegido pelos pais, sob o foco dos professores, tem demonstrado responsabilidade nos trabalhos e foi até elogiado pela directora de turma por este volte-face. Nesta idade não é plausível esperar que se veja na situação qualquer ponto positivo, mas deve-se esperar o apoio das pessoas mais próximas, em casa e na escola.
“A primavera da vida é bonita de viver
Tão depressa o sol brilha como a seguir está a chover
Para mim hoje é Janeiro, está um frio de rachar
Parece que o mundo inteiro se uniu p’ra me tramar”
Não há estrelas no céu, Rui Veloso