Miniaturas

Bom dia. O que vamos sonhar hoje?

Deambulava sem objectivo aparente numa dessas grandes livrarias que existem em quase todos os centros comerciais, quando, na prateleira das novidades literárias, um livro fininho e de aspecto humilde me despertou a atenção. Ao contrário de muitos livros que andam por aí, embrulhados em laçarotes e saquinhos de organza (as coisas que hoje se fazem para vender um livro) este era simples, pouco exuberante e possuía um título a condizer: As Miniaturas. Nada parecia destaca-lo dos restantes. E era nessa simplicidade, vincada pela luxúria visual dos restantes, que se diferenciava.

Sobre a autora, Andréa del Fuego, pouco sabia, excepto que recebeu, em 2011, o Prémio José Saramago pela obra Os Malaquias. Fora isso, um ou dois artigos lidos algures no mês de Julho, a propósito da publicação deste novo romance. Nada mais.

As Miniaturas é uma narrativa a três vozes – mãe, filho e oneiro – que se intercalam e complementam nas informações fornecidas, fazendo o ingénuo leitor acreditar que está cada vez mais perto de solucionar o mistério. Ilusão pura, dado que a história, como sucede, aliás, com os sonhos, se presta a múltiplas interpretações.

O cenário principal deste livro é o imponente Edifício Midoro Filho, um prédio “que pode ou não existir” (evidência que poderá afigurar-se desmotivante para quem gosta de romances realistas) e onde um grupo de funcionários – os oneiros – repete todos os dias os mesmos gestos, sem questionar. A função dos oneiros é ajudar os sonhantes – pessoas que não conseguem sonhar por conta própria – a construir e/ou completar os seus sonhos. Para o fazerem, socorrem-se das miniaturas, pequenos artefactos de plástico ou lata que exibem na frente dos clientese que têm o poder de sugerir sonhos. Accionado o sonho, o oneiro funciona como um guia:

“- Casa da minha avó? – ela respondeu com a perna esticada, o olho espremido dentro da cara.

– Positivo – confirmei.

– Entro pela janela?

– Positivo.

– Por dentro ela é maior do que parece.

– Positivo.”

Oneiro, sonhante e Edifício Midoro Filho têm caraterísticas que, em determinados momentos, se assumem como bastante próximas e familiares. Não é, portanto, de estranhar que, ao longo da leitura, o leitor caia na tentação de estabelecer paralelismos entre a narrativa e o funcionamento da sociedade actual. No entanto, desengane-se: não são os possíveis paralelismos que o vão agarrar, com sofreguidão, à leitura. Suspense, personagens misteriosas, uma escrita viva e com o poder de despertar imagens ricas no leitor, um enredo tragicómico e um cheirinho da cultura brasileira são, sim, os principais ingredientes que fazem deste romance um autêntico “bombom de literatura”.

“Um relógio – propus.

– Que tamanho?

-Um que cubra dois punhos.

– É uma gorda?

– Uma gorda – confirmei.”

Saí da livraria com o rectângulo amarelo na mão. Foi estranho. Não me lembro de ter retirado o livro da estante, nem me recordo do caminho até à caixa registadora. O funcionário sorriu-me com ar enigmático e o livro passou-me de relance em frente aos olhos. Na contracapa, a descrição “um romance poético e delicado sobre a ténue fronteira que separa o sonho da realidade” era uma frase que levantava suspeitas. É certo. Não tinha reparado que a livraria tinha tantos andares.

– Cartão multibanco?

– Positivo.

– Passo na máquina?

– Confirma-se.

– Parece estar lento…

– Carregue no ok. Complete.

Belisquei-me. Mas o homem  já não estava lá.

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