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Bolachas maria e caramelos de funcho

Às vezes, sentavas-te no sofá a observar a tua filha. Ela olhava para as paredes, com o olhar muito aberto e esgazeado de quem não vê, de quem está perdido no seu interior. A maioria das vezes ficava sossegada, ausente, quieta. Muito quieta. A menos que alguém se aproximasse. Se sentisse a presença de alguém, ficava imediatamente tensa, os olhos verdes gigantes. Se conseguisse, fugia e escondia-se no primeiro lugar que encontrasse.

Outras vezes, depois de estar tão sossegada que pensavas que ela estava a dormir, desatava a correr para todo o lado, saltava no sofá, na mesa, correndo e brincando, aparentemente, com alguém invisível. Com um amigo que mais ninguém via, com um espírito brincalhão.

Tu preocupavas-te. Claro, que mãe não se preocuparia? Mas sabias que ela era assim, que tinha nascido assim, e não havia nada a fazer. Os teus outros filhos eram mais velhos, independentes, já tinham saído de casa e feito a sua vida. Ela teria de ficar contigo para sempre, e tu sentias uma pena imensa. Já tinhas quase cem anos, e sentias medo do que podia acontecer quando já não pudesses cuidar dela.

Às vezes, ela aconchegava-se a ti e tu decidias não pensar demais na vida, porque não adiantava. Ela aninhava-se e tu vias televisão com ela, a comer bolachas maria. As bolachas eram duras, e tu mal tinhas dentes, mas amoleciam na tua boca e tu sentias um prazer inexplicável, sentias que a vida era capaz de ser boa para ti. Com a tua idade, já só comias o que querias. Não tinhas tempo para sacrifícios, para te preocupares com a saúde ou sentires outra coisa além de felicidade e prazer. Por isso, tinhas decidido que a tua dieta seria só bolachas maria e caramelos de funcho.

Sorrio. Volto à realidade.

Estás satisfeita a comer bolachas maria da minha mão. Hoje não há caramelos, fica para a próxima. Eu observo-te, inventando mundos para ti. Claro que não pensaste em nada disto que eu pensei agora mesmo. Tu pensas em comida, em água, em sol e em dormir. Pensas no que os gatos pensam, claro. Eu acaricio-te a cabeça e tu ronronas de prazer. Estico a mão para tocar no pêlo da tua filha, daquela gata esquizofrénica que ninguém percebe, dar-lhe algum carinho também. Mas ela não deixa: assim que olho para ela, ela corre a esconder-se atrás de um armário qualquer.

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