Chega o Natal e de repente (“de repente” para mim é uma perfeita ironia, já que nada acontece de repente, fomos nós que andámos distraídos), a solidariedade e a preocupação com o outro são o mote dos dias. Empatia tardia face a uma apatia constante? Tento abstrair-me do show off, da fantochada das empresas que pretendem visibilidade e benefícios fiscais mascarados de dádivas, da solidariedadezinha, de quem quer ficar bem na foto. Tento ver o bom no meio do mau, e consigo perceber que, embora não sejam actos de coração límpido, como seria desejável, são talvez a única altura do ano em que se dá atenção, ainda que pelas razões erradas, àqueles que mais precisam. Um pouco como a questão do Dia Mundial de, cujo objectivo maior, a meu ver, é lembrar que o assunto continua por resolver.
Às vezes, penso se não há uma soberba em nós, quando avaliamos que o outro possa precisar do nosso auxílio. Não uma soberba no sentido arrogante sobre o outro, mas antes no sentido de se sentir mais bafejado pela sorte do que o outro. Sim, temos casa, comida, vivemos sem grandes dilemas, há que reconhecê-lo e ser grato por tal, mas muitas vezes assumimos que o outro precisa de ser ajudado. E nós, que nos consideramos beneficiados, assumimos que podemos ajudar o outro, ainda que não conheçamos a opinião dele sobre o tema.. Obviamente que há questões básicas facilmente avaliáveis, mas quando vamos além das necessidades básicas, quem somos nós para achar que temos toda a razão do mundo em querer impor a nossa ajuda ao outro?
Não a conheço pessoalmente, no entanto conheço-a, pelo pouco que me deu a conhecer, e sentou-se num cantinho do meu coração. Adivinho-lhe a fragilidade nas suas palavras. Conta-me coisas suas, dramas seus, familiares idos e alguns partiram de formas dolorosas, suicídios, mortes súbitas, famílias emocionalmente disfuncionais. A juntar a toda uma carga passada que a acompanha nos dias, sem pousar a mochila carregada, há um presente de doença. A solidão, o tempo livre que não se preenche com novas e boas memórias, e permite à dor espraiar-se pelo tempo e pelo espaço mental disponível, dominando os humores. A seu lado, a gata que tanto estima, e que, atrevo-me a opinar, lhe tem prolongado a existência. Cá estou eu outra vez a analisar…
Meti na cabeça que deveria aproximar-me. Desejava intrinsecamente poder fazê-lo. Talvez pudesse visitá-la. A minha cabeça dá voltas e voltas em busca do melhor argumento, abordagem. Sem causar melindre, quero mostrar-me disponível. Arrisco um convite para um chá, levaria uns bolinhos, daríamos voz às conversas que trocamos pela net. Talvez nos abraçássemos. E como na canção, ela disse que não. E eu percebi. Não levei a mal. Há nela um receio de exposição de algo que considera não ser agradável aos demais.
No entanto, como o enamorado da canção, insisti, agitei os neurónios, e pensei que podia eventualmente sentir-se sem jeito, pela casa que tem ou pelo aspecto que tem actualmente ou por qualquer outra razão que lhe faça doer a alma. Não querendo ser intrometida , mas já sendo, sugeri um encontro num café, terreno neutro. E ela disse que não. Que tem receio que eu sinta pena. E aí eu percebi que temos que parar e pensar até que ponto, ao querermos ajudar, estamos a impor ao outro algum desconforto. A nossa vontade de ajudar tem que ser recebida, não pode ser agressiva.
Não insisti mais, não quero perdê-la. Às vezes as pessoas que não foram amadas têm dificuldade em aceitar que alguém se preocupe com elas. Mais do que isso, desabituadas do amor doado, questionam-se sobre a valência desse amor, trará segundas intenções, interesses inconvenientes. Quando são maltratados, são surpreendidos pelo olhar ou palavra do outro…será verdade o que sentem, o que dizem? São merecedores de carinho, se até aqui parecem não ter sido?
Não sei porque me prendeu desta forma. Não quero afastá-la ou assustá-la. Mostrei a minha disponibilidade, estou aqui, caso precise.Talvez um dia ela possa receber-me. Até lá, trocamos letras como quem troca abraços.