O frio é quase um personagem neste livro.
Nas páginas de Pequenas Coisas Como Estas, de Claire Keegan, o inverno da Irlanda parece congelar também a consciência de um país. Em meio a ruas cobertas de cinza, o calor surge apenas nas pequenas ações humanas — um gesto de cuidado, uma palavra dita na hora certa, um olhar que se recusa a fingir que não viu.
E é nesse contraste que o livro encontra sua força: uma delicadeza que enfrenta o horror.
Em poucas páginas, Keegan lança luz sobre uma das histórias mais sombrias da Irlanda moderna — as Magdalene Laundries, instituições religiosas que aprisionaram mulheres e crianças sob o peso da culpa e do silêncio. O tema é brutal, mas a autora escolhe o oposto da denúncia estridente. Sua escrita é de contenção e silêncio, e é justamente esse recato que torna tudo mais devastador.
Ela não descreve o horror: deixa-o insinuar-se nas frestas, como um vento gelado que atravessa a casa e o coração do leitor.
No centro da narrativa está Bill Furlong, um homem comum — marido, pai de cinco filhas, trabalhador. À primeira vista, nada o distingue dos outros. Mas Keegan constrói nele algo raro: uma humanidade que vem do afeto recebido e da coragem de não repetir a indiferença coletiva.
É como se, no meio do gelo, ele fosse capaz de reconhecer uma chama.
Talvez porque saiba, de algum modo, o que é o frio.
Em uma entrevista para Oprah, Claire Keegan disse algo que parece atravessar a alma do livro: a ausência de tristeza seria a morte da empatia.
É essa consciência que dá profundidade a Bill — a noção de que só quem conhece a dor pode realmente perceber a tristeza no outro. A empatia, então, não é um dom, mas uma herança. E Bill, amado na infância, é capaz de fazer diferente — de amar de volta, de agir quando todos se calam.
Seu gesto, pequeno e silencioso, tem o peso de um milagre moral: o de escolher o bem mesmo quando o mundo inteiro escolhe olhar para o lado.
Finalista do Booker Prize de 2022, Small Things Like These (ou Pequenas Coisas Como Estas, na edição portuguesa da Relógio D’Água) é um retrato terno e implacável de uma Irlanda dominada pela Igreja Católica e pelo medo de questionar a autoridade.
Com a precisão de quem entende o poder da pausa, Keegan transforma o cotidiano em revelação moral: as pequenas coisas, quando feitas com verdade, são as que mudam o mundo.
A história foi adaptada para o cinema, com Cillian Murphy no papel principal. A escolha parece natural — o ator tem o olhar de quem carrega um segredo, e o filme promete dar corpo à atmosfera contida que Keegan escreveu.
Contudo, é na prosa — nesse estilo enxuto e luminoso — que o arrebatamento acontece.
Ao fechar o livro, o leitor sente o frio e a vergonha de uma sociedade que se calou por tanto tempo. E talvez também perceba o que a autora tenta nos dizer, com voz quase inaudível: que a empatia nasce do sofrimento partilhado — e que, às vezes, basta um único gesto justo para quebrar um silêncio de séculos.
No fim, é disso que o mundo precisa: pequenas coisas que iluminem o escuro, gestos simples que carregam a grandeza da humanidade.
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Português do Brasil.
