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As palavras dela

Hora de escrever, expressar sentimentos usando palavras. Era o que mais gostava de fazer. Mas nem sempre era-lhe fácil. E desde que ela partira, cada palavra que tinha de pensar soava-lhe a uma alfinetada a trespassar a pele, cravando-se fundo num músculo, com a ponta aguçada já bem perto do osso. Vivência infernal era aquela que ele sentia ali, sentado no escuro da ausência de ideias. As teclas silenciosas incapazes de sentirem os seus dedos. O monitor branco quando branco é tudo o que existe, a união de todas as cores que não se deixam ver.

Prostrado, não sabia o que escrever. Pensava, mas apenas ela permanecia na mente. Ela que tanto lhe havia dado para sentir. Uma vida de felicidade que apesar de ter desde de início um limite, sempre pareceu estar longe. Nem o peso da idade foi capaz de reflectir a realidade de que o juntos para sempre, não passava de uma ilusão. Ele desviou o olhar do computador e pensou nela. Tentou ouvir as suas palavras na memória, mas apenas uma frase soava na mente. E não se recordava de a ouvir dizê-la. Nem se alguma vez ela a havia dito. A desinspiração começava a tornar-se insuportável. As páginas em branco tinham que ser preenchidas. Que pressão, que ódio lhe era inventar o que não queria ser inventado. Não conseguia sequer encontrar posição para simplesmente estar. Então levantou-se da cadeira, pegou no casaco e saiu de casa, na esperança de esbarrar com algo que quisesse ser escrito.

Na rua foi agraciado por um frio acolhedor. Não apertou o casaco para o receber, como que a dar-lhe as boas vindas com o seu corpo, a dar-lhe uma razão para existir. Olhou para um lado da rua, depois para o outro e escolheu seguir para a sua direita sem conseguir saber porquê. Apenas porque sim. Caminhava longos minutos pela rua aberta, sem destino aparente, quando percebeu que não sabia onde ia. Sorriu ligeiramente porque era isso que pretendia. Caminhar errante e esperar que algo fosse com ele ter sem se mover. Continuou e aquela frase insistia em não o libertar. Parecia-lhe importante mas desprovida de sentido face à perda que foi a partida dela. Deteve-se junto a uma esquina. Levantou o rosto e abriu os braços enquanto gritava em silêncio aquela frase para si: “Continua a viver”.

Uma velhota interrompeu-o, fazendo-o regressar repentinamente à realidade. A velhota perguntando-lhe por onde se ia para o cemitério. Ele indicou o caminho mais fácil e rápido. Ela agradeceu a bondade com um sorriso gentil e seguiu o caminho indicado. Também ele continuou a percorrer as ruas, sem determinar um destino. Absorto em si, não se aperceber que seguia a velhota. Não a viu desaparecer em frente dos seus olhos quando ela entrou no cemitério. Depois entrou também ele. Continuou a caminhar de rosto fechado, olhar num chão irreal, sem reparar que os prédios e lojas que ia deixando para trás, tinham dado lugar a campas e mausoléus. Continuou e continuou. Até que se deteve. Com um esgar de espanto viu-se em frente à campa da sua falecida esposa e então percebeu. Aquela frase que ele não se recordava de ouvir, percebeu ter sido a sua amada esposa que a colocou nos seus pensamentos. Pressentiu a sua vida futura, encontrou uma razão para voltar a escrever, percebendo agora o mistério sentimental que aquela frase pesava sobre si. Sempre chorou por não ter chegado a tempo à cama do hospital que encontrou vazia. Conhecia-a e sabia que ela desejava que ele continuasse a viver. “Continua a viver”, dissera ela no seu leito de morte. Com a última nesga de força, deixou aquela frase suspensa até que ele fosse capaz de a segurar.

Ali em frente à sua campa, conseguiu ler aquela frase, e mais do que isso, conseguiu senti-la para além dela. Ajoelhou-se, agradeceu em silêncio, anunciou o seu amor beijando a face interior da mão para depois a colocar sobre a cama, onde o nome dela se lia. Depois reergueu-se e seguiu em passo apressado para casa. Despiu o casaco, sentou-se e escreveu até os dedos lhe doerem. Tinha finalmente continuado a viver.

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