As Chuvas Vieram

Mensagem para o António do fim da história:

Saudades de ler um romance comercial com qualidade, a maioria dos quais nasceu na época de ouro, entre as décadas de 20 e 50, da imaginação de autores como Daphne du Maurier, Somerset Maugham ou Stefan Zweig. A avaliar pelas primeiras 23 páginas (são 481), não te vais desiludir quando chegares ao fim: a forma que um autor encontra para fechar um livro é determinante, mas tenho fé em como este te vai encher o coração, tal como agora tens (tenho?) consciência do privilégio de estares sintonizado com a obra, de teres acertado no momento para agarrar o livro e mergulhar nele, deixando que viaje pela tua alma.

António V. Dias

Caparide, 30 de Dezembro de 2019

 

Uma vez mais, foi o Saldanha Bento quem me aconselhou As Chuvas Vieram e cedo descobri, após iniciar a leitura, que os bocadinhos de tempo no Zêzere com o café da manhã antes de entrar para o escritório iriam ser um prazer, tal como as horas de almoço, em que dava por mim a fazer de propósito para sair sozinho e não encontrar gente conhecida.

Encontrei-o por cinco euros na Feira do Livro de Lisboa em 2015. Levei-o num fim-de-semana para a Marinha Grande, onde tencionava começar a empreitada. A quarta página encontrava-se “colada”. Fui à cozinha e com uma faca, abri e continuei a leitura. À porta da página oito, não consegui entrar: novamente colada. Desta vez, fui buscar a faca e abri a página na sala. Por curiosidade, resolvi percorrer o livro: de quatro em quatro páginas estavam coladas… e eram 481!

Não vale a pena repetir aqui os palavrões nem o pânico que se apoderou de mim ante um fim-de-semana pela frente sem um livro para começar… levei mais de uma hora a cortar as páginas, ficando a obra dos Livros do Brasil “esfarrapada”

Quanto ao livro, as cores da Índia durante a presença britânica, a evangelização, as monções, o hinduísmo e as castas, a vibrante cidade imaginada de Rachinpor, e uma abertura que só de a reler já me deixa saudades:

Era a hora predilecta de Ransome. Sentado à varanda, bebericando o seu whisky, contemplava os jactos do Sol, que douravam de um último incêndio os frondosos banianes, a casa cinzento-amarelada, as buganvílias escarlates, antes de mergulhar no horizonte e deixar a região nas trevas.

As chuvas vieram e o mundo de aparências esvai-se com a enxurrada; na fronteira da morte, caiem as máscaras, afastam-se as convenções, religiões, países, e os membros de uma pequena comunidade vêem-se forçados a agarrar a condição de humanos para sobreviver à impiedosa força da natureza. Então, despidos dos constrangimentos, emergem as paixões… a mesma força, a mesma natureza.

A razão, porém, porque mais o amava era por saber – coisa que nunca teria imaginado – que ele era tão infeliz como ela própria.

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