Foi publicado um artigo defendendo que nunca houve uma promessa e, muito menos um acordo assinado, sobre a não expansão da NATO para o leste europeu. O artigo é interessante de se analisar, tanto pelo viés analítico quanto pela proximidade com o discurso oficial sobre a NATO.
O artigo pretende esclarecer que existe legitimidade no expansionismo da NATO em direção ao leste europeu, e que a promessa da não expansão é, na verdade, um mal entendido das elites políticas russas, mais especificamente de Vladimir Putin. A análise é escrita sob a perspetiva norte-americana, porém, descura o que tem sido a história recente da Rússia, seja ela enquanto império ou república soviética1.
Um dos problemas do maniqueísmo é a simplificação de realidades complexas e que têm mais do que uma explicação2. É daqui que advém o problema do bem e do mal, indivíduo e sociedade, civilização e primitivismo. Se, num primeiro momento, a divisão pode ser útil para diferenciar caraterísticas, em momentos posteriores impossibilita a compreensão global do problema. A realidade é muito mais complexa do que uma divisão entre nós e outros ou bons e maus.
Não podemos, todavia, esquecer que a História é escrita e contada pelos vencedores e a União Soviética, fruto do desastre burocrático e pouco realista da sua condição, foi quem perdeu. Um evento político pode ter tantas versões quantas as pessoas que nele estiveram envolvidos. Contudo, a visão distanciada, não apenas do tempo, mas especialmente ideológica é que permite as condições metodológicas de análise.
Um olhar atento às localizações das bases militares dispersas pelo mundo, mostrará que podemos encontrar dois muros: Europa (leste) e Ásia. Se alterarmos a lente de análise, conseguiremos ver que existem cerca de 750 bases militares norte-americanas dispersas por 80 países. Em resumo: os Estados Unidos têm, pelo menos, três vezes mais bases militares do que todos os outros países juntos. Se excluirmos as bases norte-americanas, temos o Reino Unido com 145 e a Rússia que não passa de 30 bases. Contudo, a propaganda oficial enumera países como a China ou a Rússia como o maior perigo mundial. Talvez, olhando pelas lentes de outros países, o tabuleiro se inverta e sejam os Ocidentais quem personifiquem o perigo3.
Não podemos ser românticos sobre como se desenvolvem as relações internacionais, mas, sim, realistas. Cada Estado desenvolve a sua política externa com base em objetivos políticos concretos e que possam incrementar a posição de poder, recorrendo a estratégias económicas ou políticas4.
Afirmar que a invasão russa sobre a Ucrânia se baseia num mito sobre uma suposta promessa, é esquecer a História russa e o contexto político desde a Segunda Guerra Mundial. Se a invasão é condenável, claro que sim. Se a Ucrânia tem direito à sua integridade territorial e independência, sem dúvida. Se existem movimentos de extrema-direita na Ucrânia, sim, à semelhança de qualquer outro país que já esteve na esfera da União Soviética. No entanto, é preciso ter em conta que um evento histórico não acontece subitamente, mas, sim, na sequência de outros acontecimentos.
A política externa norte-americana tem sido constante na forma como atua, independentemente da cor partidária ou da personalidade de quem que ocupa a Sala Oval. Cria-se uma corrente sanitária em volta do “inimigo”, recorrendo a acordos comerciais ou de cooperação militar. Resumindo, esta é a política de contenção usada durante a Guerra Fria, tendo sido adaptada à medida que novos atores desafiaram a liderança dos Estados Unidos da América5.
É esta política estratégia que justifica o número de bases americanas e o sentimento de cerco nos países visados.
O artigo em assunto reflete a tendência geral de olhar para um determinado evento apenas por um par de lentes. Independentemente de ter havido promessas, ou não, de ter havido acordos (in)formais ou não, o que resulta da análise ao contexto geopolítico é o contínuo cerco da Rússia, iniciado no período da Guerra Fria, e da China, sob a bandeira da política de contenção.
Quer haja acordo ou tratado assinado, a realidade mostra que existe um conjunto de infraestruturas militares, nomeadamente, mísseis nucleares estratégicos norte-americanos estacionados na Alemanha ou Itália de que não se fala, mas aquando do transporte do mesmo tipo de mísseis russos para a Bielorrússia causa imediatamente pânico nos meios de comunicação europeus.
O reposicionamento estratégico nuclear da Rússia é uma reação ao crescente cerco efetuado. Ao descontextualizarmos historicamente e sem uma visão geral da realidade, caímos na repetição de informações que não refletem a totalidade de um fenómeno.
1De socialista só teve a designação e algumas inscrições na sua constituição política. Em boa verdade, não é seriamente possível defender a existência de um regime socialista na URSS, Coreia do Norte ou mesmo na China. A URSS foi um regime que degenerou numa preponderância e domínio de elites burocráticas que ocuparam o espaço de poder vago pela estrutura czarista.
2Explicações que não são excludentes, mas complementares para a observação de um dado fenómeno ou facto social.
3Será que os iraquianos ou os palestinianos têm algo a dizer sobre isto?
4O uso militar é, como referiu Clausewitz, a continuação da política por outros meios.
5Por exemplo, a inclinação para o Pacífico no Conceito estratégico da NATO 2022 revela a mudança estratégica para um Pacífico cada vez mais alvo de tensão entre a China e os Estados Unidos.