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Alguém para comer

O café estava já para lá de frio. No alpendre, Clara e Eduardo olhavam a chuva e o embalo do vento nas ramagens. Duas cadeiras de baloiço, duas canecas na redonda mesa de madeira que separava os assentos e duas mantas, uma sobre cada par de pernas. O mesmo silêncio num chalé ensopado pelo amor onde, hoje, se ouviam os pequenos estalidos da chuva que contra ele ia. Um deleite. Clara deixou deslizar as pálpebras, era preciso quebrá-lo – ao silêncio. Há conversas que são custosas, até entre irmãos. Pegou nas canecas:

– Vou esquentá-lo. Café gelado é coisa para quem está a pagar promessa.

Eduardo sorriu. Virou ligeiramente a cabeça para trás em direção à porta e elevou o tom de voz para que se ouvisse do lado de dentro.

– Devias rever esse teu desleixo enquanto irmã. Se fosse a ti pedia já para me salvarem a alma e procedia ao pagamento antecipado. Café gelado para começar a jornada.

Clara sorriu-lhe de volta entregando-lhe a caneca em mãos. Estava para lá de quente, o vapor denunciava-o. Abençoado café de chaleira. Tornou a sentar-se. Finalmente, a pergunta:

– Chamaram-te com alguma urgência, a suficiente para me afligir.

– Não é nada que mereça o apoquento – Eduardo ajeitou a manta, caçando-a debaixo das pernas. Estratagemas que se arranjam para tapar possíveis fugas e manter o calor.

– Ainda assim gostava que, entre estes goles, mo contasses.

– Desconfiam que me encontro à procura de alguém para comer. É desconfiança acertada, creio por isso que não soube disfarçar em condições.

Clara susteve o café na boca pela revelação inesperada. Esperou que a informação se ajeitasse em si, naquilo que lhe pareceu uma eternidade, e engoliu-o em seguida. Eduardo apresentava uma calma peculiar.

–  E é isso motivo para tanto alarido? Se fossem chamar todos os que estão precisos de tal coisa não se fazia nada mais.

– É o literal que faz o alarido. Que excitação, devorar alguém que o quisesse! E depois, mais tarde, alguém que me devore. Assim, vamos sendo uns para os outros.

– Ao estilo Armin Meiwes? – as rosas da face de Clara deram lugar a uma palidez sofrida. Eduardo prosseguiu calmo.

– Mentir-te-ia se dissesse que essa história não me fez as delícias.

– Não estou recordada em detalhe… – o desconforto, a apreensão e o medo inibiam-lhe o raciocínio.

– Permite-me… – Eduardo inclinou-se para a frente e fez um compasso de espera antes de seguir. Clara precisava respirar. Recostou-se novamente, iniciou – Primavera na Alemanha de 2001. Meiwes tinha a proposta, “procuro pessoa bem constituída entre os dezoito e os trinta anos para ser morta e depois consumida”. Brandes apresentou-se com a vontade, a de ser inteiramente deglutido. Já viste, Clara? Ainda dizem que o cúpido falha! Encontraram-se. Quando dois querem a coisa dá-se, não é assim? Não penses que não me deixa reticente esta junção de canibalismo entre dois amantes. Voltemos a Brandes… estou a aborrecer-te?

Aborrecer não seria o termo. A preocupação era desmedida, mas há que saber não calar a verdade e deixá-la vir. Melhor que não se invoque a preocupação, não vá Eduardo comedir-se nas palavras e fica-se no mesmo. E ficar no mesmo em nada ajudará.

– Não me ocorre tema melhor, Eduardo – o café baloiçava na caneca de Clara por conta do tremor das mãos.

– Brandes queria ser comido, suplicou a Meiwes que lhe arrancasse o pénis à dentada. Meiwes salteou-o, em pedaços, com vinho e alho. Apreciaram a refeição os dois, em conjunto. E, respondendo à pergunta que deve estar a nascer em ti: esponjoso. Foi assim que Meiwes o descreveu.

– E após a morte? – a verdade é que há assuntos que mais vale serem apressados. Que não se cale a verdade, mas que se a apresse.

–  Ficou o que sobrou de Brandes em salmoura, pendurado num gancho de carne.

– Quando pensas nesta história o que te ocorre, Eduardo?

– Que entalaram bem o filósofo e a psiquiatria forense – Clara olhou-o com uma expressão franzida, claro sinal de confusão. Eduardo acedeu de imediato ao pedido de esclarecimentos e prosseguiu. – Ambos mentalmente perturbados, vontade e consentimento desde o início até ao final. Sobreviveu Meiwes, é culpado de quê?

– Simpatizas com Meiwes?

– Podes descansar-te, Clara. Dar a César o que é de César, Meiwes é um canibal com mérito. Eu não pretendo ter no chalé um gancho com um cadáver para consumo. A mim não me dá, ainda, para comer o morto. A ver se me entendes doce irmã, em mim não é ideia de matar ou morrer… é a ideia de consumir ou ser consumido por outro alguém. Fantasio, quanto muito, mas não é o morto o repasto que agora procuro. Quero em vida. Devorar e assimilar o que consumo, sentir-me a digeri-lo, a integrar-se em mim. É incrível como nos podemos tornar, verdadeiramente, parte uns dos outros, não achas? Não é que me importasse com uma pequena amputação… bem, isto já são outros quinhentos. Perspetivas a longo prazo, digamos assim.

– Quando te chamaram Eduardo, que te disseram?

– Poupando-te aos detalhes, eis o que se seguirá: psicoterapia cognitivo-comportamental.

Clara pousou a caneca e levantou-se. Contornou a sua cadeira de baloiço e assomou-se atrás da de Eduardo. Inclinou-se, deixou cair os braços sobre os ombros do irmão de vinte anos e acariciou-lhe o peito com as mãos. Beijou-lhe a testa na lateral direita e encostou-lhe a bochecha. Ficaram a namoriscar os chuviscos e as ramagens. Clara estava ciente de que em Eduardo vivia uma das mais perigosas parafilias: vorarefilia, do latim vorare, “engolir” ou “devorar”.

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