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Absolvição

Quando a mulher se calou, o padre deixou que o silêncio fosse uma espécie de veneno entre eles. Na sua cabeça, mil perguntas a formarem-se numa torrente. Em tantos anos de sacerdócio, já ouvira toda a espécie de pecados e malvadezas, mas nunca ninguém lhe havia confessado um homicídio. 

Deixou que a mulher secasse as lágrimas que lhe desciam em profusão pelo rosto e perguntou-lhe se queria dizer mais alguma coisa. O silêncio tornou-se ainda mais pesado. O padre desejou que a mulher se explicasse, que apresentasse a Deus uma defesa válida, algo que a absolvesse imediatamente e lhe tirasse a ele esse fardo, mas ela não o fez. Continuou prostrada, as mãos torcidas num nó. Por fim, falou, as lágrimas de novo a inundarem-lhe os olhos sem que ela as conseguisse travar.

Matá-lo-ia de novo, se pudesse. Matá-lo-ia quantas vezes ele renascesse. 

Nesta frase, o padre não viu maldade. Em vez disso, sentiu naquilo uma sentença eterna, o peso insuportável dos condenados na voz trémula daquela mulher. De repente, percebeu. Não havia para ela castigo maior do que a catástrofe que estaria a viver por dentro. Não sentira nas suas palavras o mínimo apaziguamento, nem qualquer resquício de redenção. Era como se uma tempestade tivesse começado no momento em que aquelas palavras saíram da boca da mulher e o mundo inteiro se tivesse transformado num lugar caótico imediatamente a seguir.

De mãos entrelaçadas, o padre pediu a Deus que lhe mostrasse como poderia valer àquela mulher. Que papel lhe caberia, agora que era conhecedor de um crime e, ao mesmo tempo, guardador de um segredo? Haveria pecados que escapassem à obrigação do sigilo da confissão? Poderia ele guardar este segredo ou teria de o denunciar?

O padre fechou os olhos e iniciou uma prece. Rezava baixinho, os dedos artríticos brancos, quase sem sangue, a boca cerrada e encolhida num botão cheio de rugas, tudo lhe parecia já uma condenação. O pecado desta mulher passara a pesar também na sua consciência, não por ter sido cúmplice do crime em si, mas porque sabê-lo e não o denunciar era o mesmo que ter efectivamente espetado a faca no peito daquele homem, fosse ele quem fosse.

Se não o tivesse matado, tinha morrido eu. 

Matar ou morrer. Lutar ou sucumbir. O padre quis saber mais, certo de que tudo o que pudesse vir a saber a partir de agora não mudaria o facto de que sabia de mais. A mulher contou os anos de insultos, a violência verbal e psicológica, os encontrões, os puxões de cabelo, as chapadas sempre invisíveis, sempre em privado, sempre no silêncio daquele casamento que só foi feliz no dia em que se celebrou. No dia seguinte, a mulher acordou com um punhado de cabelos arrancados do seu escalpe, pousados ao seu lado na almofada. Depois disso, houve nódoas negras escondidas pela roupa e pela maquilhagem e mais nódoas negras a seguir, por conta do excesso de maquilhagem usado para esconder as anteriores. Contou-lhe da forma como o marido a fizera refém no momento em que tiveram uma filha. As ameaças acerca da vida da menina, ou de como nunca mais a veria, se tentasse denunciá-lo, mantiveram-na calada durante anos. 

Mas agora já não. Agora, o medo era apenas uma recordação dolorosa de um passado demasiado pesado, demasiado intenso. Agora, já não temia pela sua vida nem pela da filha.

A filha. Sara assente no fundo das garrafas que bebia, umas atrás das outras, também ela a combater demónios a que a mãe não conseguia chegar. Sara, a filha que a salvara e, ao mesmo tempo, a condenara a quase vinte anos de inferno. Pela filha, teria aguentado tudo. Pela filha, não foi capaz de aguentar mais nada. 

Quando a mulher se cala, o padre levanta o rosto, mantém os olhos fechados e a boca cerrada. Dentro de si, um tornado de dúvidas. Terá o direito de negar ao homem morto a justiça pela sua morte? Ou terá a sua morte sido precisamente a justiça que ele merecia, por todos os crimes cometidos contra aquelas duas mulheres? Seria Deus capaz de perdoar esta mulher, assassina para se salvar, justiceira em causa própria, que aguentara durante anos todas as infâmias por amor à filha e por medo de, morta, não lhe poder valer, caso o pai a maltratasse como fizera consigo? 

Por fim, diz:

A sua penitência foi cumprida nos anos em que teve de aguentar morrer um pouco todos os dias. Talvez Deus não condene os que matam para se salvar. No dia em que morrer, saberá. Eu sou incapaz de a condenar. 

A mulher saiu do confessionário deixando o padre sozinho. Agora também ele teria contas a prestar perante Deus. Ou talvez Deus os tivesse abençoado a ambos com uma salvação que não poderiam ter de outra forma. 

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