No meu país não sei, mas na minha cidade há duas mil pessoas a viver na rua, quantas serão crianças?
Nos caminhos da vida, um dia conheci uma menina pequena de olhos grandes e tristes, filha da vida madrasta. Criança pequena vivendo na rua, da caridade dos outros. O seu sorriso ainda brilhava, qual Sol em decadência da morte de estrela magnífica. A tua esperança nunca morre, a tua desconfiança nunca cresce. Acreditas num mundo melhor e eu nem sei como. A tua vida cumpre-se todos os dias, mesmo que não haja sol.
Todos podemos ser magoados, como todos morreremos. Todos gostamos de sentir a relva na pele. Todos fomos crianças e todos seremos, com sorte, velhinhos. Todos erramos erros feios. Todos temos um baú velhinho das memórias muitas vezes felizes de uma infância já perdida.
Criança pequena que come do lixo dos outros ricos. Terá uma ferida jamais sarada de não poder esquecer do lixo dos outros que comeu. Algumas feridas doem para sempre, sem partir para outras paragens do deserto dos sentires, nos corações secos dos ricos que não podem sequer querer conseguir imaginar as aflições dos pobres.
Todos temos uma criança adormecida dentro de nós, com todas as borboletas a que temos direito, se conseguirmos.
Criança pequena destruíram-te os sonhos de ser simplesmente uma criança pequena. Podias brincar na rua até tarde e agora a rua é a tua morada principal.
Estás longe de casa e não sabes dos teus pais. Tinhas direito a um carinho, mas a voz da tua mãe ficou-te longínqua nos truques da memória. Ficaste na gaiola de um mundo sem perdão e nenhuma saída. Achaste inocentemente que a protecção merecida te ia perdurar para sempre e de repente tiraram-te o tapete debaixo dos pés.
Aprendeste de cor a voz de tua mãe e depois só te sobraram as sobras do tentar não esquecer que tiveste mãe. Nas noites frias lembras-te sempre dela e do seu calor.
Pedes nas ruas de uma cidade escura, cheia de pessoas vestidas de escuro. Falhou-se a vida para ti, pediste tão pouco e recebeste quase em nada. Sabias a que sabia o amor de filha, ficaste a saber ao que sabe a fome pungente. Dependes de ti e só de ti.
O teu anjo da guarda esqueceu-se de ti e foi de férias para outro planeta e deixou-te sozinha no cenário da sobrevivência. No teu mundo tudo te é permitido, menos o sorriso sincero da criança por protegida e feliz.
Falhámos a vida neste país, quando temos crianças sozinhas por essas ruas afora, qualquer coisa nos falhou na falta do altruísmo, a vida falhou, o estado falhou, a educação falhou, o tecto que não te demos faltou e se chover, chove-te em cima a céu aberto do teu esconderijo.
Deixámos-te as feridas a descoberto quando olhamos para o lado e nem sequer te damos o nosso melhor.
Somos filhos de um mundo egoísta em crer que tudo está bem e nos seus lugares certos. É errado pensar que não te podemos salvar da incompetência de um mundo, também ele ferido da ausência de compaixão pelo outro. Já não sobra muito do pão que comemos, nos dias do esquecimento do outro, mas ainda nos deveria sobrar alma, para dar do pouco que ainda temos.
Partimos de casa e nem sequer nos lembramos que o teu lar é debaixo da ponte seca. Um dia quando formos velhinhos teremos muitas histórias para contar, mas nunca a de termos salvo uma criança da rua.
Desviamos os sentidos para não sentir a tua ferida aberta. Pensamos sempre que alguém te irá ajudar e nunca nos lembramos que podíamos ser esse alguém, esse sol que entrasse pela tua casa adentro e te tirasse ao vento e ao frio das tempestades deste Inverno que parece nunca acabar.