A Regra do Jogo

Foi há muitos anos que vi A Regra do Jogo pela primeira e última vez. No tempo das VHS, ou melhor, no período de transição para os DVDs, em que, no final da adolescência/inicio da idade adulta, era incomparavelmente mais económico gravar um filme na TV ou mesmo comprar uma cassete original do que um disco (altamente inflacionados naquele tempo, antes de saber o que era o Torrent ou o Streaming, e muito antes do surgimento do Blue-Ray).

Na viragem do século, um filme antigo tinha o valor que uma pedra preciosa tem para uma dama de sociedade ou um selo raro para um coleccionador: era muito difícil acedermos a obras europeias antigas. Estávamos dependentes da vontade dos canais de TV.

Jean Renoir é um caso raro de um filho que não dormiu à sombra do prestígio do pai. Pierre-Auguste Renoir é um dos nomes grandes da pintura mundial. Nada mais sei sobre ele, mas sobre o (segundo) filho posso dizer mais umas coisas. Jean Renoir dominou como poucos uma época e um género em França, a comédia de costumes. Ainda hoje sou capaz de evocar a estupefacção, depois daquela visualização singular em casa, numa VHS novinha, mas impotente para restaurar a qualidade à película que o digital viria a corrigir, quando me recordo dessa tarde.

Num tempo em extinção (e talvez já o fosse em 1939, o ano do filme), as intrigas da nobreza (talvez fossem da burguesia) que se juntam numa mansão de uma França rural, são contadas em paralelo com as peripécias vividas pelos criados da casa, cruzando-se as classes numa obra absolutamente deliciosa. A caçada, o cenário, a mesa da refeição, tudo faz sentido e tudo nos prende neste filme. Pouco mais posso dizer a esta distância – mais de vinte anos –, mas está na lista dos melhores. Sinto até algum receio de voltar a ele, pois habituamo-nos a depositar camadas (finas) sobre o que vivemos, ao ponto de construirmos paulatinamente outra vivência/experiência/memória, quando comparada com essoutra que então sentimos. Talvez esta, trabalhada em quem nos fomos tornando, seja mais real para nós pois incorpora o que vivemos no que fomos vivendo posteriormente. Como se a fotografia de então não ficasse estagnada naquelas duas horas de filme, mas fosse ganhando vida própria, outras tonalidades, ultrapassando mesmo os sentidos imediatos ao ponto de quase lhe atribuirmos um cheiro ou sabor.

Voltando a A Regra do Jogo e a Renoir (este nome será para mim sempre o do realizador e não o do pintor), a série que culmina nesta obra vinha sendo preenchida com A Grande Ilusão (1937) ou A Fera Humana (1939), filmes que não vi, e que faz de mim um sortudo por, em potência, me aguardarem boas sensações (créditos para o Javier, o professor de espanhol que repetia inúmeras vezes a sorte que tínhamos por ainda não termos lido Dom Quixote – depois dele, a fasquia subia consideravelmente).

Vi, sim, um outro, na Cinemateca, anos depois d’A Regra do Jogo: Boudu Querido (é mesmo este o nome do filme!), de 1932, sobre um vagabundo que cai numa família burguesa, e do qual me ri como poucas vezes aconteceu numa sala de cinema. Não posso assim dizer que conheço a obra de Renoir, mas o que conheço é ouro.

Ter A Regra do Jogo na galeria de 1939 é só mais uma prova de que há anos em que os astros se alinham e o talento, a vontade e o sentir de uma época confluem na arte que nos é deixada. Visto hoje com alguma poesia, poderia ser o antegosto das trevas que estalavam os alicerces da condição humana, como se o Cinema quisesse concentrar num só ano todo o testemunho do que melhor sabia fazer. E Tudo o Vento Levou, O Monte dos Vendavais, Ele e Ela, Peço a Palavra, Cavalgada Heróica, O Feiticeiro de Oz, A Regra do Jogo, Paraíso Infernal, Adeus Mr. Chips ou Ninotchka (falta-me ver os três últimos) formam um decálogo quase obrigatório para um amante de cinema.

Embora nunca hajam verdadeiras obrigações nestas coisas de desfrutar da arte, passar por cinéfilo deixando passar A Regra do Jogo, não é necessariamente triste, é apenas uma quase certeza de ter perdido uma peça do puzzle que, mais do que completar o todo, encerra em si um dos segredos que permite compreender toda a imagem.

[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]

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