A Proposta

Madrid, 1978

Alma deixou-se cair em cima do sofá. A carta que encontrara em cima da mesa, as chaves de casa largadas ao lado. Se pensasse em algo verdadeiramente surpreendente e inesperado, não conseguiria ter imaginado este cenário. De repente, era a jovem abandonada pelo homem por quem se apaixonara. Uma absoluta tontice.

Obrigou-se a voltar atrás, a escrutinar os últimos meses com um pente de dentes muito finos, em busca dos sinais que deveriam ter estado lá. Tinham de estar. Ninguém desiste assim, deixando apenas uma carta e as chaves, e levando tudo o resto. Inclusive, o futuro.

Nada. Não encontrou nada. Não deu conta de ausências, de coisas mal explicadas, de mentiras, de meias verdades, de inconsistências. Não deu conta de nenhum momento que pudesse ter-lhe dado sinal de que aquele homem, um dia, a deixaria sem pré-aviso.


Saragoça, 1977

Jaime encostou a testa à parede, a imagem do puro desespero. Claro que já sabia que não devia meter-se em negócios escabrosos. Não era burro nenhum, mas a ganância talvez fosse a sua característica mais comprometedora. Onde havia a promessa de dinheiro, havia o olho de falcão de Jaime. Tinha em si uma dualidade que talvez fosse interessante objecto de estudo: de um lado, a ganância; do outro, a noção de que tudo poderia correr mal. Não se tornara invencível à medida que os negócios foram correndo bem. Pelo contrário, quanto mais tempo passava, maior era a certeza de que tudo haveria de falhar em breve. Por isso, era cauteloso. Ou pensava que sim.

Quando o trio de homens bateu à porta, Jaime soube que estava por pouco. Teria de se defender, não venceria uma luta contra aqueles três cães de fila de Álvaro Corduña. Abriu-lhes a porta depois de inspirar profundamente. Ofereceu-lhes whisky e perguntou como podia ajudá-los. Javier, o mais pequeno dos três, disparou-lhe um soco contra o maxilar. Jaime agarrou o queixo e tentou não cair. O sacana do baixinho era rápido e surpreendentemente eficaz. Cabrão. Respirou fundo, fechou os olhos e arriscou.

— Se vamos conversar assim, vou precisar de mais do que um whisky.

Nenhum dos homens se mexeu. Cartago, o mais gordo, sentou-se na beira do sofá e fez um gesto com a mão para que todos o imitassem. Jaime não se sentou. Ficou a olhá-los de cima, a mão esquerda a ajeitar o maxilar atormentado.

— O senhor Corduña quer falar contigo. Pessoalmente.

Jaime nunca vira Corduña. O contacto tinha sido iniciado por Cartago numa noite de demasiados copos numa tasca cheia de gente de má fama. Jaime aterrara ali por acaso, não conhecia o sítio nem o que se dizia dele. Estava longe de casa e parara para uma cerveja e umas tapas. De repente, Cartago sentara-se na sua mesa, olhara para ele de cima a baixo e dissera apenas que tinha um negócio para lhe propor. Jaime perguntou a que propósito vinha aquilo. Não estava ali à procura de nada, especialmente de negócios. Cartago pousara-lhe a mão sapuda no pulso, apertara um pouco.

— Não te perguntei nada, pois não?

Explicara o que haveria a fazer: deveria ir ter com ele no dia seguinte a uma viela perto da rua principal. À porta, estaria um homem (o baixinho que lhe assentara o soco no queixo). O homem não diria nada, mas ele deveria identificar-se com um número. Percebera mais tarde que aquele número não representava nada, era apenas uma coisa aleatória que não poderia ser rastreada nem ligada a nada. Espertos, os tipos.

No dia seguinte, Jaime apresentara-se com um atraso de 15 minutos. Quando o baixinho o deixou entrar, Cartago pediu-lhe justificações.

— Ainda não trabalho para vocês. Demorei porque tive de demorar.

Surpreendido com a resposta do homem, que julgou imediatamente irrascível e demasiado arisco, Cartago não retrucou. Mandou-o sentar-se e apresentou-lhe a proposta. Meio milhão de pesetas para fazer desaparecer um empecilho. Jaime tossiu perante a oferta. Estava habituado a esquemas bem mais baratos — e bem menos complexos, também. Pediu que lhe explicassem exactamente o que teria de fazer.

— Entras, disparas, sais. Não te preocupes em limpar nada. Preocupa-te só em não deixar rasto. Do resto tratamos nós.

— Se é só para disparar, porque é que não disparas tu?

— Porque não é para isso que me pagam.

A resposta não serviu de muito, mas Jaime decidiu não explorar o tema. Entrar, disparar, sair. Na verdade, os seus esquemas costumavam ser bastante mais complicados, porque havia sempre despojos com que era preciso lidar. Claro que tudo isto lhe parecia demasiado bom para ser verdade, mas se estivesse errado e corresse tudo bem teria a vida resolvida. Se não corresse… bom, só erraria uma vez. Ou morria, ou arranjava forma de fugir.

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