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A Ponte

No dia em que as rugas vincadas de Augusta sentiram o peso de um século de vida, recordaram a fragilidade de uma lágrima a percorrer o rosto lentamente. Augusta, a última pessoa da aldeia que o mundo já esquecera. Mas aquela não era uma lágrima de solidão. Era de amor.

Há cem anos atrás, nasceu numa aldeia perdida no centro de uma serra onde as pessoas não chegavam. Um rio descia pacificamente, saltando de patamar em patamar, as águas faziam música enquanto caíam nas cascatas que venciam o desnível e iam sulcando o terreno durante milénios até formarem aquele pequeno vale, pequeno mas cheio de natureza. As copas das árvores de cada lado do rio tocavam-se e formavam uma abóbada que variava do verde intenso no verão à pureza do branco da neve no inverno, e escondiam uma velha ponte romana que era o único caminho que ligava a aldeia ao mundo, e por vezes à realidade.

Augusta cresceu banhando-se nas águas do rio com César, o seu amigo de sempre. Juntos foram a alma e alegria daquela aldeia. As pessoas cresciam e percebiam que ali nada tinham, ou assim julgavam elas. Tinham a natureza em estado puro, a terra fértil e generosa, os animais. Mas cresciam, sentiam que nada tinham, e partiam. Augusta via-os a percorrerem o caminho, a atravessarem a ponte com um adeus para nunca mais regressarem. Por isso chamava-lhe a Ponte da Ida, as pessoas só a cruzavam para irem, nunca para voltarem. Era o sítio mais triste que conhecia e só as brincadeiras com César faziam-na sorrir e esquecer o quanto temia que todos cruzassem a velha ponte menos ela.

Augusta e César eram as duas únicas crianças da aldeia, tinham quase a mesma idade e ninguém era mais novo do que eles. Cresceram a brincar e brincaram a crescer. Juntos iam para escola improvisada no adro da capela. O avô de César ensinava-os o que podia, a ler e escrever o básico e a tratar da terra e dos animais. No fundo ensinava tudo o que precisavam de saber para ali serem felizes. Mas o seu neto perguntava várias vezes que mundo era esse que fazia as pessoas partirem para nunca mais voltarem. Não tinha resposta porque o seu avô também não sabia. Os dois amigos discutiam e punham-se imaginar como seria esse mundo, o que haveria nele, ele sonhava e ela temia-o, e entre animadas conversas, brincadeiras e experiências, ele beijou-a. A natureza também está nas pessoas e as crianças cresceram. Ainda jovens já não eram crianças e depois de explorarem o rio e os montes, exploraram-se um ao outro. Descobriram o corpo um do outro, porque razão ele era ele e ela era ela. Tomaram-se nos braços, deitaram-se e entregaram-se um ao outro. Ele e ela foram eles pela primeira vez. Pela primeira vez amaram e amaram-se.

Augusta vivia cada vez mais angustiada. A criança que cresceu com César transformou-se numa jovem mulher que o amava. Mas sabia que o coração dele vivia na ânsia de conhecer o mundo lá fora. E o dia que ela mais temia aconteceu. Depois de se amarem, ele olhou-a nos olhos e disse que ia partir. Ela nem tentou impedi-lo. Deixou-se ficar submersa na sua tristeza com o olhar salgado a verem-o atravessar a velha ponte. Augusta estava agora só. Viu o seu amor partir e o seu mundo a desmoronar-se. Só voltaria a sorrir meses depois, quando pegou nos braços o seu filho recém nascido.

Naquele dia. Ela sentia-se a última pessoa da aldeia. O seu rosto parecia o leito seco do rio que descia a serra ali ao lado, de cascata em cascata, de ruga em ruga. Ninguém para a ajudar a secar as lágrimas. Um século de vida. Um amor perdido para o mundo, um filho empurrado para esse mesmo mundo para que ele não sentisse a dor que o isolamento lhe provocava. Meio século é meia vida sem os ver.

Estava na hora de ela partir também, não pela ponte mas olhando o céu. Apenas aquele toque no ombro a fazia esperar. Uma mão gasta pela vida, um olhar que reconheceu à primeira apesar de já não o ver há mais de oitenta anos.

César pegou na mão do seu filho e foram os primeiros a atravessar a ponte para voltar. Porque do outro lado estava Augusta à espera para partir.

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