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A filha do meio

Todos os anos tiravam a fotografia da praxe. Dizia a mãe que era para se ir mostrando a evolução, ver como iam crescendo. Ela, invariavelmente, ficava no meio, entre as duas irmãs, a mais nova, a engraçadinha, e a mais velha, a ajuizada. Os irmãos já não ficavam na foto. Estavam tão crescidos que eram dispensados.

Era sempre a mesma coisa. Ajeita o vestido, olha o cabelo, que sapatos são esses, nunca estava bem. Não se lembrava de ouvir isso das irmãs, se calhar era impressão sua. Nunca estava em condições, havia sempre uma pontinha para embirrar, qualquer coisa para criticar. Não crescia tanto como a irmã ou tinha ficado tão desconchavada que nem parecia uma menina.

Ela aguentava tudo sem dizer nada. Já devia estar habituada, mas, na verdade, nunca se habituou, sempre lhe custou, mas engolia em seco. Não era nem bonita nem engraçada, tinha saído à tia solteirona. Coitadinha. Só havia uma coisa a fazer, continuar o que fazia sempre: sorrir de modo conveniente. A aproximação daquele dia era sempre traumática e ela não o podia evitar.

Hoje era outra vez aquele dia ridículo que ela detestava. Lá estava ela, já adulta, a repetir a graçinha de todos os anos. Cada vez eram mais naquela foto. As irmãs já se tinham casado, tal como ela, mas tinham filhos. Ela não. Continuavam as críticas: olha a tua irmã mais velha, a ajuizada, olha a tua irmã mais nova, a engraçada, olha aqui, olha ali. Ela sabia muito bem quem eram todas: elas e ela.

Casou-se com o Eduardo porque tinham feito um acordo. Ele fazia a vida que queria, mas era um homem casado, no papel. Entre eles nunca houve contacto físico, não havia nem interesse nem atracção, mas a fachada mantinha-se. Pouco lhe importava que ele dormisse com mulheres ou com homens, o problema era dele, não dela. Voltava sempre para casa que tinha comprado, antes de casar com ela, mas que tinha colocado em seu nome.

Ela até sabia que ele era dado a tudo menos a ela, que era a “encomenda” das duas famílias. Tinham idade para sair de casa e, sem vontade nenhuma, fizeram-lhes a vontade. Já lá iam uns anos. Davam-se bem, diziam todos. Nunca os viam nem zangados nem a discutir. Não sabiam que vida é que eles tinham, mas davam opiniões. Coisas de todas as famílias

Ela estava conformada com tudo, desde o início. Contudo, nem sempre tinha sido assim. A foto sim, a vida dela é que não. Houve uma altura que ela conheceu alguém por quem se apaixonou. Deixou-a de cabeça desvairada. Porém, a vida não lhe foi simpática. Ele nunca deu o passo necessário, não era a altura ideal, não podia ser, agora não dá e um dia foi para a marinha e embarcou. Esteve fora dois anos e ela esperou. Voltou, mas ainda não podia ser, tinha que embarcar mais anos. Ela não embarcou mais na conversa dele e virou-lhe as costas. Chorou lágrimas duras, cheias de serrilhas, mas continuou de cabeça levantada.

O Eduardo apareceu na altura certa, quando ela precisava de sair daquele ambiente familiar inquisitório. Salvaram-se um ao outro. A ele também lhe “partiam” a cabeça com a falta de juízo e ela só lhe pediu para ele ter cuidado. Nada que desse que falar. E foi nestas condições que o casamento se fez. A ela dava-lhe libertação e a ele muita liberdade. Perfeito para os dois.

O tempo foi passando e a mãe um dia disse-lhe: olha as tuas irmãs Isaura! A mais velha tem dois filhos e a mais nova tem três. De que é que estás à espera? Ela teve tanta vontade de dizer que estava à espera de perder a virgindade, de conhecer um homem que a amasse ou que a entendesse. No entanto, continuou calada e sorriu, de ombros encolhidos, para ficar mal na fotografia, como sempre.

Um dia acordou e o Eduardo estava  dormir ao lado dela. Pela primeira vez olhou para ele com olhos de ver. O homem era bonito e atraente. Não admirava que estivesse sempre enrolado com tudo o que mexia. Abraçou-o tão forte que o corpo reagiu. Ela sentiu uma vontade tão grande de o experimentar. Foi o que fez. Um pouco à bruta, porque era inexperiente, mas soube-lhe tão bem! Ele acordou, estremunhado e aproveitou a oportunidade.

Naquele dia tinha nascido uma nova Isaura, uma mulher que se começou a produzir, a cuidar de si, a ser notada. Ele começou a namorar com ela. Gostavam um do outro. Ela rejuvenescia e ele apaixonava-se. Entenderam-se e apaixonaram-se. Uma nova etapa começava para os dois.

Era dia de tirar a foto de família. Ela ficava no meio das irmãs. A mais velha, a ajuizada e bonita com os dois filhos, um de cada lado, a mais nova, a engraçada, com os três filhos ao pé de si e ela, no meio, como era habitual. Desta vez a mãe não lhe disse o que costumava dizer, não lhe disse que estava desengraçada nem que era uma pindérica.

A fotografia ficou muito bem. Estava uma Isaura sorridente, muito bonita e que irradiava felicidade. O corpo era perfeito, o cabelo adequado e a roupa a condizer. A mãe desconhecia aquela filha e abraçou-a muito até às lágrimas caírem pelo rosto. Todos quiseram uma cópia. Havia ali um certo magnetismo, uma energia diferente que contagiava. A Isaura apareceu e passou a ser o modelo de comparação.

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