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A estrela mais brilhante

A minha tia Ana gostava de aprender. Talvez por a vida não lhe ter sido leve, a sua maior preocupação era o sustento e o bem-estar dos outros. Ela ficava sempre para o fim. E foi ficando. Queria que todos estivessem bem e só depois é que tratava dela. Se não existisse já a palavra altruísmo certamente que seria inventada para ela. Chego a desconfiar que sim.

Já não vive connosco há anos. Mudou-se para uma outra paragem que deve ser do seu agrado e satisfação. Acreditava no céu e na recompensa, por isso, deve estar a gozar dos seus proventos. Viveu encolhida numa vida longa, mas estreita assim como a última cama que teve. Nunca lhe ouvi um queixume e, com toda a certeza, que teria muitos para soltar, mas engoliu-os todos, um a um e ficaram condensados dentro de si.

Tenho um casaco que comprei para não me esquecer dela, conforme me pediu. É muito quente, como era o seu coração e muito confortável, tal como a sua alma. É vistoso, o oposto do que ela era, mas eu gosto de cores e de padrões e assumo que me dão imensa satisfação. Este casaco é muito mais do que isso: é o nosso elo de ligação que nunca se quebra.

Fui passar um fim-de-semana com amigas, como se fossemos adolescentes e cheias de vontade de nos libertarmos dos pais. A alegria juvenil não a perdemos, mas não foi dos pais que nos afastámos, mas sim de uma outra realidade que quisemos esquecer durante uns dias. E tínhamos uma amiga para conhecer, o que nos motivou ainda mais.

Levei a tia comigo nesta odisseia que teve direito a tudo e que será inesquecível. Mesmo não sabendo inglês, a tia divertiu-se imenso e foi a tantos lugares que agora, assim de repente, não se consegue lembrar de todos. Eu traduzi-lhe tudo e fiz com que sentisse aquilo que gostaria de ver. Ela gostava imenso de ver montras com vestidos de noiva. Talvez ainda sonhasse com um casamento e um príncipe encantado. Quem sabe?

Havia tanta coisa para ver e o tempo era tão curto que o esforço valeu a pena. Começou logo no avião, quando ela, mesmo sem ser vista nem sentida, deu a mão à menina que estava cheia de medo por ser a sua estreia naquele meio de transporte. Era a primeira vez e, depois de levantar voo, divertiu-se imenso, porque afinal de contas é bem mais seguro do que andar de automóvel. Acho que ela a tranquilizou e fez com que tudo corresse bem. Ela sempre foi assim.

Não houve guerra de almofadas, porque o cansaço apoderou-se de nós e dormimos, mesmo aquelas que disseram que não pregaram olho. No dia seguinte fomos a uma igreja maravilhosa que parecia nunca mais acabar. Ela gostava muito destes locais e olhava para eles com religiosidade, mas eu levei-a a ver a parte mais cultural. E chorei umas lágrimas estranhas, quentes e carregadas de energias e peso histórico. Tudo assim misturado deu um belo cocktail que ficará nos anais daquela abadia.

Foi passear de barco, o que gostava de fazer. Apesar de ter medo, muito medo da água, o barco dava-lhe alguma calma, provavelmente devido aos balanços das ondas. Penso que aí deixava ficar as suas mágoas, o que juntamente com o sal, bem batidas davam um sabor agridoce à sua vida que foi sempre tão insípida. Afinal nunca conhecemos bem as pessoas, pensamos é que sim.

Gostou das iluminações e dos vestidos que estavam nas montras. Viu tudo, sentiu tudo e ainda queria mais, mas os pés estavam a dizer que doíam muito e que o corpo precisava de descanso. Tem muitos anos, mais de 100, o que lhe dá todo o direito de reclamar. É natural que se canse. Mesmo sendo um espírito tão bom e sossegado também necessita de repouso. A beleza tem de ser retemperada para continuar a colocar a sua asa em quem precisa.

Olhou para a amiga nova e ofereceu-lhe aquela serenidade que ela estava a precisar. Vi-a feliz e com um ar tão tranquilo que me deixou menos preocupada. As suas boas energias chegam para todas e era a vez dela, porque a que tinha medo do avião já estava arrumada. Baptismo de voo com algumas peripécias, mas só serviu para dar tempero ao que é tão sensaborão. Não minha querida amiga, um avião não é uma feira embora possa parecer. Gostei dessa!

A tia gostava de feiras e deve ter visto a coisa nessa perspectiva. Várias maneiras de ser servem para equilibrar tudo e levar a reparar em todos os detalhes, mesmo aqueles que parecem passar despercebidos. Tantos olhos a ver e tantas emoções a sentir só podem resultar em algo de grandioso e assim para o inesquecível. Estou em crer que assim o será.

A noite é tão cheia de luz e de pessoas tão diferentes entre si como iguais. Altas, baixas, cabelos compridos, curtos, soltos, presos, encaracolados, lisos, rapados de tantas maneiras que se possa imaginar. Cada um tem o direito de se expressar da maneira que entender. Ela olhava para todos fascinada e extasiada. Tanta gente bonita! E como gostava de gente jovem!

Comeu, bebeu, riu, chorou, fez confidências, dançou, saltitou, andou e correu como se ainda tivesse uns anos frescos e leves de transportar. Ali tudo se despia e nada era censurado. Zona de desabafo com um sinal forte que apanhava quem precisava. Era essa outra das intenções. E criar ainda mais laços. Laços não, linhas, que ela era uma mestra na arte de coser e usar a agulha e o dedal. Penso que nos coseu ainda mais, com aquela linha rija que nada consegue quebrar.

Depois foi o regresso a casa e a vontade de voltar a fazer tudo de novo. Pode ser para o mesmo sítio ou para outro qualquer. Desde que vamos todas juntas, estas miúdas que frequentam todas esta escola especial de talentos e desafios, será sempre uma maravilha. As pernas podem falhar um pouco, mas a vontade é mais forte. Vale tudo!

Descansa, agora, a minha tia e enquanto dorme está a fazer o balanço dos últimos dias. Foi bom e tão gratificante que tem que ser repetido. A vida só faz sentido quando existe um motivo e mesmo que estejamos adormecidas, ela lembra-se de nos dizer como e que é! Nada será como dantes e seremos cada vez mais determinadas. Há tanto para conhecer!

Arrumo o casaco e fecho o armário. O que viveu já ninguém lhe tira e os cheiros e as memórias ficam-lhe impregnados. Pode conversar com os outros, fazer-lhe inveja ou simplesmente contar-lhes onde esteve. A tia era um doce de pessoa e só queria o bem de todos. Vai ficar muito discreta, como sempre fez, no calor do armário, à espera da nova aventura.

Fui levar a tia a passear e acho que ela se divertiu muito. Gostou imenso de conhecer as minhas amigas e faz questão de dizer que todas são especiais. Ela é mesmo assim. Nunca gostou de conflitos e nesse fim de semana houve alguns limites que podiam ter sido esticados. Não foram. Estamos sempre a aprender e mesmo que já cá não estejamos, em modo físico, temos sempre quem nos leve no coração e consiga viajar até ao infinito.

Aqueles que amamos a sério, com força e intensidade impossível de medir nunca nos morrem. Simplesmente ficam mais longe e difíceis de localizar. E é tão fácil voltar a estar com eles. Basta abrir a mente e deixar as emoções fluírem e se soltarem. Chorei. Acho que o meu luto começou agora. É sinal que continuamos vivos e cheios de vontade. Viver é algo de maravilhoso!

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