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A dúvida

Laura fumava um cigarro na varanda, enquanto olhava sorrateiramente para os bolos. Eram bolos de chocolate e crepes de morango, com cores bonitas, mesmo em cima da mesa da cozinha como se se estivessem a exibir para ela. Deu mais uma passa. Era sempre assim, quando retornava a si, via que a Emília tinha dedicado as horas dela a fazer bolos. Nunca sabia se haveria de provar ou não – seria ético? Estranho? Mas a realidade é que  acabava sempre por provar e deliciar-se. Se ao menos a Emília conseguisse manter-se mais tempo activa, poderiam abrir um negócio e enriquecer!

Claro que, para a Emília ficar mais tempo activa, isso implicava a Laura apagar-se mais.

Apagou o cigarro no cinzeiro e entrou em casa. Fechou a varanda e viu o seu reflexo. Olhou por um momento, como se não se conhecesse. Depois, foi até à sala e ligou a televisão.

“Hmmm… és a Laura?” a voz de menino do pequeno João veio da porta.

“Sim” ela continuou a fazer zapping, sem olhar para ele.

“Okay!” ouviu os passinhos dele correrem escadas acima.

Já estava habituada àquelas perguntas aparentemente sem sentido. A resposta normal para outra pessoa qualquer seria “Sim, claro que era a Laura, quem mais poderia ser?” Ah, mas aí é que estava: podia ser a Emília. E talvez até outros! Quem sabia?

Olhou para a ausência do João na porta, onde tinha estado uns segundos antes. Mordeu o lábio com vontade de chorar. Ela tinha a sensação que quem conhecia a Emília gostava mais dela do que de Laura. Emília cozinhava, fazia bolos, lavava a loiça, enquanto que Laura só tomava conta das crianças da família e, mesmo assim, mal. Quem não iria gostar mais da pessoa perfeita, quem não iria preterir a doente mental de quem tinham medo?

Teve saudades da vida anterior, de que já nem se lembrava – a vida antes de se candidatar para o lugar de baby-sitter a full-time daquela família, a vida antes da depressão profunda.

A vida antes de descobrir que sofria de transtorno dissociativo de identidade.

Apetecia-lhe outro cigarro, e pensou em ir para a varanda fumar e chorar. Talvez se sentisse mais limpa e liberta, talvez conseguisse deitar fora essa auto-comiseração que tanto desprezava nos outros. Não queria render-se a nenhuma das duas coisas, nem fumar nem chorar, por isso engoliu a vontade e continuou a olhar sem ver para a televisão, que emitia gritos de pessoas supostamente famosas que ela não conhecia.

Deitou-se no sofá, insatisfeita e ainda com a alma agitada, a mente a correr a mil. Surgiu-lhe um pensamento perturbador: e se a outra for eu? E se eu não existir realmente, se esta vida for da Emília e não minha? Se eu for a personalidade que não existe, que não devia existir? Por momentos quis levantar-se e correr para a casa de banho, ver-se ao espelho, ver que era ela, que era a Laura. Quase por reflexo tocou na sua cara, sentiu-se. Claro que era ela, quem mais poderia ser?

Mesmo assim, sentia-se agitada, cansada. Considerou que devia voltar ao psiquiatra, talvez ele a pudesse ajudar a sentir-se melhor.

Quando acordou, o marido sorria para ela e tocava-lhe nos cabelos com cuidado, carinhosamente. “Emília?” perguntou-lhe: “és tu?” Ela olhou para ele e disse um “sim” tão baixo que quase nem ela própria ouviu. Aninhou-se a ele e fechou os olhos. Ele beijou-lhe a mão. “Ainda bem que voltaste.”

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