A crise do imobiliário 2.0

Uma das vantagens dos tempos modernos consiste na excelente capacidade de mobilização de percepções, através das tecnologias, rádios e demais mass media. Tudo hoje é uma crise: é o tempo, é a habitação, é a paciência e por aí fora. A única crise que falta é a crise de sermos todos bilionários.

A crise na habitação é a última novela mexicana que nos assola, porém, com alguma razão, porque de facto existe uma crise com a habitação. Claro existe alguma veracidade no assunto exposto, bem como existem bastantes inverdades também.

A primeira grande inverdade é a preocupação do governo em procurar soluções para o caso. Não existem soluções governamentais, a não ser que o governo construa bairros sociais, mas, para isso, é necessário capital, algo que também não existe, e espaço livre onde esse problema se situe.

A grande verdade consiste no facto de que a habitação hoje ser de difícil acesso para a maioria dos que dela necessita e os factores são bastantes, que, quando conjugados, resultam no espaço perfeito para a especulação. Como qualquer mercado, o preço é ditado pela velha aritmética da Procura vs. Oferta, mas não só.

O parque habitacional nacional

Portugal concentra a maioria da sua população nos grandes centros urbanos, tal como o INE relata, e o DN de 23 de Novembro de 2022 publica:

“O padrão de litoralização do país e de concentração da população junto da capital foi reforçado na última década. Cerca de 20% da população do país concentra-se nos sete municípios mais populosos, que abrange uma área de apenas 1,1% do território. No outro extremo, representando também cerca de 20% da população, temos os 208 municípios menos povoados e que ocupam 65,8% da área do país.”

Em 2008, na primeira crise imobiliária, os “estudos” apontavam o problema ao sector da construcção civil. Portugal, como foi referido na altura, construiu em uma década, o que deveria ser erigido em três décadas. Parece que, passados 15 anos (e a construção civil não parou, apenas desacelerou, durante este período), se faz querer que foi insuficiente essa obra.

Também não nos podemos aludir ao crescimento demográfico total (autóctones e estrangeiros residentes permanentemente) português, porque o mesmo cresceu em um milhão de habitantes de 2000 a 2021, 48 mil novos cidadãos ao ano, em termos médios, e, de 2011 a 2021, se construíram 150 mil novas habitações. Isto, em pleno período de abrandamento. Convém não esquecer, que a estatística não é a realidade absoluta, Portugal atingiu a marca dos 10 milhões de habitantes na primeira década de 2000 e, nos últimos 20 anos, a mesma se mantêm estável.

O papel governativo

O governo não tem um papel preponderante na habitação em si. Não é proprietário, é mau arrendatário e, particularmente, é um exímio especulador, essa é a preponderância governativa na habitação, a especulação.

As medidas que o executivo tomou, pomposamente apelidadas de “Apoio à Renda”, não chegam a todos os necessitados e, mesmo aos que da mesma usufruem, ela torna-se completamente ineficiente em termos práticos (podemos sem receios equiparar a medida à isenção do IVA, bonita no papel, inútil na realidade). Nem tão pouco irá ser relevante a redução de IRS aos arrendatários, porque quem vive com o problema da habitação, por norma, já pertence aos escalões mais baixos do referido imposto.

O governo tem sido um exímio especulador do negócio habitação, foi-o em 2008, imputando na sociedade o preço da corrupção financeira, e, novamente, se dobra na medida actualmente. Fadi Lama, consultor internacional no Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento, aponta as falhas do ocidente na economia aos idiotas e iletrados em posições de poder, especialmente os governos, que economicamente são um zero.

Qualquer medida ou apoio estatal para este (ou outro sector privado) é feito à custa da sociedade. O governo não ajuda, desvia verbas de sectores para outros, e na falta de verbas disponíveis, aumenta impostos. É notória essa falta de verbas no OE2024, o mais pesado em termos tributários das últimas décadas.

Interessante ajuda teria sido o governo congelar as taxas de juros aos créditos para habitação concedidos antes da crise, actuando como regulador do mercado em questão. Na prática, os créditos emitidos (benefício das taxas 0 e negativas do BCE) antes do problema (na necessidade de crescimento virtual do PIB e da virtualização económica) estavam negociados e a fluir. Isto seria o governo a trabalhar para a sociedade e não contra a sociedade.

Injectar dinheiro, através do social, é por si só apelar a um crescente especulativo e o social (não fossemos nós governados pela teoria socialista) é a medida certa para a pobreza, para a ineficiência e para a corrupção.

O sarilho que nos enfiaram

Em Agosto de 2023, a Deco Proteste calculava um aumento na prestação de até 240€ mensais, por cada 150 mil euros de empréstimo, isto não aflige só o contraente do mero crédito para a sua habitação, atinge também o sector da construcção, com o recuo da procura, e o sector cooperativo ou privado que, com o recurso ao crédito, detenha em carteira de imoveis para arrendar. A habitação é uma necessidade, mas também é um negócio.

As sucessivas crises no Ocidente, fruto da incompetência governativa, o empobrecimento geral das sociedades, a alta concentracção demográfica, tornam a vida, em geral, um pesadelo. De 2010 a 2022, o preço da habitação em Portugal disparou 70%, em contrapartida, o poder de compra no mesmo período cresceu em termos médios 1% (Dados INE).

As rendas em 2023 cresceram 11,1% e os salários sofreram um corte no mundo real a rondar os 15% (ainda que para mais e não para menos), fruto da inflacção. Tudo isto conta e o problema alastra-se, ainda que não só na habitação.

Quem precisa de arrendar, não come ou come e vive no carro, esta é a realidade de professores, por exemplo. Quem adquiriu casa nos últimos cinco ou dez anos, com um contracto de crédito a 30 anos, perdeu a capacidade de poupar e, quando a poupança, é de todo impossível, o investimento é nulo.

O problema está montado

Resta saber como desmontar o problema.

E o maior problema é a necessidade do actual sistema económico necessitar de crises cíclicas e, com ciclos cada vez mais curtos, o neoliberalismo (capitalismo 2.0) tem destas virtudes, que vai sempre recair sobre a base da economia, a sociedade.

Regular o mercado habitacional, estabelecendo tectos e limites, quer ao arrendamento, quer ao crédito, é tal como a medida do IVA, inaplicável, porque o mercado da habitação é um segmento privado da economia. E mesmo no sector financeiro (banca), a ausência de um banco estatal (a CGD é tudo menos isso) de raiz, que estabilizasse taxas de juro e implementasse programas que fomentassem a compra ou reabilitação de imoveis, garantindo a estabilidade dos fluxos monetários, regulando as taxas de juro de acordo com a paridade do poder de compra, iria no curto prazo despoletar a bolha especulativa do sistema financeiro e voltaríamos a 2008.

E 2008 seria o mal menor do problema circunscrito ao mercado habitacional. Contudo, ainda existe o perigo da recessão económica 2024/2025 [a próxima crise fruto do simulacro em 23 de Outubro de 2022 na Bélgica (SEERS 2025)] e, antes do meado deste século, as crises das dívidas soberanas. Estas serão as grandes questões que se avizinham, tornando estas crises um passeio no parque.

Talvez a proposta de Brücke esteja correcta e seja a solução. Ou talvez não tenha outra solução a não ser a mudança do paradigma actual.

Regular e não impor

Dada as características demográficas nacionais, sem regulação, o sector irá ciclicamente (por norma de arrasto com os maus desempenhos económicos) sofrer “crises”. A habitação é um problema sistémico das economias especulativas e não produtoras, como Portugal. A mera regulação do mercado habitacional é ineficiente e estabelecer tectos aos valores por m2 vai fazer crescer (algo que já é representativo) o arrendamento à margem dos pressupostos legais, além de tornar o investimento aos proprietários mais moroso de retornos.

Goste-se ou não, sem proprietários que invistam não há habitação para arrendar.

Depois outro problema que interfere na questão é o problema da migração positiva. Se desde a década de 2000 a demografia portuguesa se encontra estável nos 10 milhões, mas o facto não se dá devido ao saldo natural [2000 – 14.64 vs. 2022 -40.64]. Em termos médios, a população autóctone portuguesa diminui 12% ao ano, por outro lado o saldo migratório cresce (no mesmo período) 20% ao ano. Isto considerando, claro, o cenário oficial da migração.

É importante regular e restringir o acesso ao mercado de trabalho estrangeiro, com o “fecho” de fronteiras a não especializados e operários comuns, reduzindo o social e investindo no pleno emprego, dispersão das actividades económicas pelo território nacional, a regulação do mercado financeiro habitacional, de acordo com o desempenho económico.

Ou podemos fazer de conta que o problema é passageiro e ver onde isto nos leva. Hoje é a habitação, amanhã é o carro.

O grande problema nem é a habitação, mas o facto de uma economia especulativa em declínio necessitar de crises ou de ciclos económicos cada vez mais curtos. Se durante 23 anos não se planeou a longo prazo, naturalmente que o curto e médio prazo são as medidas económicas vigentes e é com elas que temos de viver, uns melhor, outros nem por isso.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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