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1950 – All About Eve ou Sunset Blvd.?

Na noite fria em que, abafados em agasalhos, fomos até à Achada, lembro-me de levar vestido o sobretudo que o meu pai me tinha oferecido no Natal. Não me recordo onde me encontrei com a Daniela, a Filipa e o David. Subimos juntos à Mouraria e rapidamente nos aproximámos da Casa da Achada, uma associação cultural onde nessa noite projectariam Eva (All About Eve, 1950). Conhecemo-nos num curso de história do cinema poucos meses antes (o David era o único que eu já conhecia) e, se no início os nossos encontros eram sobretudo cinematográficos, logo alastraram à diversidade que transforma o contacto de ocasião em amizade.

Joseph L. Mankiewicz, o realizador de Eva, esteve próximo de arruinar a carreira, quando quase arrastou a 20th Century Fox para a falência com Cleópatra (Cleopatra, 1963). No entanto, a sua versatilidade granjeou-lhe o respeito e o reconhecimento que merece. A alternância de género sem perda de qualidade é também uma marca de genialidade no trabalho de um realizador.

Um dos poucos directores comparáveis a Mankiewicz (e que o superou) no risco que tomou ao enveredar por diversos estilos cinematográficos foi Billy Wilder, o qual disse um dia que “os austríacos eram o melhor povo à face da Terra pois convenceram o mundo inteiro de que Beethoven era austríaco e que Hitler era alemão!” O tom jocoso da afirmação sinaliza a ironia presente numa parte considerável dos seus filmes, ele que visitou praticamente todos os géneros com mestria, da comédia ao filme negro, passando pelo drama, pelo cinema bélico, histórico, romântico e até pelo filme de tribunal.

No Verão, as noites de cinema acontecem ao ar livre, num beco mesmo em frente à Achada. Já lá apanhei grandes noites de cinema… e de vento. Não creio que alguma vez tenha dispensado um agasalho, mas era Inverno e o filme seria projectado no interior. As cadeiras dobráveis antecipavam um desconforto anunciado, mas lá nos conseguimos sentar lado a lado, numa das filas da frente. Eu continuava com frio à medida que a sala se ia compondo de gente como nós, amantes de cinema de todas as formas e feitios, ambientes ou ocasiões. E naquela ocasião, nem cinco minutos eu havia passado na cadeira da Achada e já o meu rabo, se bem que protegido pelas calças e pela gabardine, começava a ganhar formas de quadrado.

Se Wilder quebrou barreiras, Mankiewicz moveu-se na perfeição dentro dos limites que os estúdios comportavam (exceptuando Cleópatra). Durante o período de ouro, enquanto um se reinventava, o outro cimentava o seu valor. Cruzaram-se no ano de 1950, oferecendo para a posteridade aquelas que viriam a ser as suas obras-primas. Tendo visto Eva primeiro, o filme apanhou-me desprevenido e invadiu o espaço que normalmente reservo para as grandes obras. No entanto, a paixão arrebatadora que senti com Crepúsculo dos Deuses (Sunset Blvd., 1950), o filme que Billy Wilder realizou nesse ano, não me deixou dúvidas sobre qual viria a ser o meu preferido.

Ter a oportunidade de ver estes filmes é uma dádiva… um prazer para um amante de cinema. Eva descreve a ascensão de uma jovem e tímida actriz de teatro, Eve Harrington (Anne Baxter), protegida pela estrela maior da época, Margo Channing (Bette Davis), até alcançar o estrelato. Crepúsculo dos Deuses mostra o lado negro do cinema, ao retratar a decadência de uma antiga lenda do cinema mudo, Norma Desmond (Gloria Swanson), isolada na sua mansão em Sunset Boulevard, que acreditava que o mundo ainda a idolatrava quando há muito a havia esquecido.

A minha opinião sobre Eva (All About Eve, 1950) naquela noite ficou aquém do juízo que havia formado aquando da primeira visualização. A projecção de bairro é para mim tão acolhedora que nem o frio que ia desaparecendo com o calor humano encerrado na sala, nem as duras e estreitas cadeiras de plástico ou mesmo a paciência do João Pedro Bénard a carregar no enter em tempo real de cada vez que deveria entrar uma tira de legenda, foram capazes de beliscar o gozo que eu sentia por estar ali. A partir de certa altura, a sala não estava apenas quente: eu simplesmente destilava… e que frio fazia lá fora naquela segunda-feira. Não podia tirar o sobretudo, porque suava em bica e notar-se-ia, imagem que não me agradava nada passar. Tive que aguentar. E o meu rabo continuava a “quadrar”…

Reconhecendo a justiça que só o tempo concede, apraz-me hoje dizer que Crepúsculo dos Deuses é melhor filme do que Eva. Contudo, se esta comparação sugere algum desprimor para a obra de Mankiewicz, reformulo a juízo: Crepúsculo dos Deuses consegue ser ainda melhor do que Eva. A construção da história da subida ao estrelato retratada em Eva mais não é do que uma história de poder: da luta pelo poder, contra o poder estabelecido, de conquista e de queda, dos meios para atingir os fins e daqueles que, orbitando em torno dessa luta, vão oscilando entre a lisura e o oportunismo, o cinismo e a aceitação, de modo a sobreviver no mundo que acontece nos palcos do teatro. E é na construção de todas estas dimensões que está o grande mérito de Mankiewicz.

Wilder demonstrou todo o seu génio na concepção de um enredo gótico-inverosímil, aproveitando antigas estrelas do mudo para retratar os esquecidos da indústria. Norma Desmond mais não é do que um retrato da própria Gloria Swanson, também ela desaparecida havia muito tempo (entre 1935 e 1950 havia apenas feito dois filmes), bem secundada por Erich Von Stroheim, o mordomo que simulava as cartas dos fãs para manter a sua diva na louca ilusão de que o mundo permanecia a seus pés. Hollywood não gostou de se ver retratada de uma forma tão cruel e o filme levou três Óscares entre eles o de Argumento Original, tendo Eva triunfado nos principais prémios (Filme, Realizador e Argumento Adaptado). No entanto, falar de injustiça neste caso seria, passe a redundância, injusto… é que até nas frases icónicas os filmes ombreiam…

Recordo o arrepio que senti, quando vi a cena em que o cínico jornalista Joe Gillis reconhece Norma Desmond:

Joe Gillis: You’re Norma Desmond. You used to be in silent pictures. You used to be big.

Norma Desmond: I AM Big. It’s the PICTURES that got small.

O mesmo não aconteceu com a frase marcante de Margo Channing, quando desce a escada e se apercebe da presença de Eve Harrington:

Margot Channing: Fasten your seatbelts. It’s going to be a bumpy night.

É também em ambientes como aquele que encontro na Casa da Achada que me sinto em casa. Foi a segunda visualização de Eva que desbloqueou o empate que as obras haviam gravado na minha mente, elevando Crepúsculo dos Deuses ao lugar cimeiro do cinema americano nesse ano de 1950.

Já sem conseguir prestar qualquer atenção ao filme, eu só sonhava com o frio do qual ainda duas horas antes eu maldissera. Quanto eu não daria para apanhar ar fresco…

Levantámo-nos mal a música final se sobrepôs ao “The End” a preto-e-branco e dirigi-me apressadamente para a saída, deixando dois euros no porco mealheiro, o meu contributo e agradecimento pela boa vontade que ininterruptamente a malta da Achada oferece a tipos como eu, que só sabem queixar-se… do frio, das cadeiras ou das legendas…

As opiniões da Filipa, do David e da Daniela a respeito de Eva foram mais modestas do que a minha revisão em baixa e, ainda que eu tenha tentado defender o filme, nada pode (nem deve) ser feito contra os gostos dos outros. Essa subjectividade é um dos grandes trunfos da arte.

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