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Um homem normal – parte I

A Jesusa tinha acabado de pisar a pequena e velha varanda de pedra quando viu o pombo morto. Hesitou. Arrepiou-se. Nos últimos tempos, tinha metido na cabeça que qualquer dia a varanda caía e ela cairia com ela, e ali estava um sinal. Benzeu-se, fechou as portadas da varanda e preferiu a janela do quarto – era melhor, mais valia prevenir porque nunca se sabia o que lhe estaria a dizer o destino. Sacudiu os tapetes com força contra a parede, o pó misturando-se com o nevoeiro que tapava a cidade, que tapava o rio, que tapava a ponte. O mundo tão bem escondido que era assustador, parecia que tudo tinha desaparecido e só sobrava ela, a pensão, a Carminho e aqueles tapetes carregados de sabe-Deus-o-quê, montes de sabe-Deus-o-quê que voavam agora para longe e que passavam a fazer parte da bruma densa. A Jesusa nem sequer conseguia ver o Cícero, embora o conseguisse imaginar tão bem como se lhe estivesse a pôr a vista em cima, ali deitado debaixo das mantas na esquina de sempre, na rua em frente à sua pensão. Fechou as janelas com dificuldade, sentia os nós dos dedos doridos e tinha as mãos roxas de um frio que se adentrava pela pele, que gelava a alma até penetrar nos ossos.

“Que tempo antárctico!” disse alto, enquanto descia as escadas até à recepção, onde estava a Carminho. O seu sotaque espanhol hoje parecia ainda mais preguiçoso, agarrando-se às palavras que ela lutava por dizer. Nem a língua queria mexer naquela invernia, e isso era dizer muito da loquaz Jesusa. “Não vejo um centímetro à minha frente.”

A Carminho olhou para ela num silêncio sonolento e vagaroso. A Jesusa fez-lhe sinal para ir fazer camas, limpar as casas de banho, desamparar-lhe a loja. Tinha pena da rapariga, mas quando ela lhe fazia aquele ar torpe dava-lhe raiva ter-se deixado levar pelo coração. Ainda por cima, como se devesse alguma coisa àquele traste bêbedo, o fugido ex-marido, que a tinha deixado em mãos com aquela criatura – uma prostituta menor, com idade para ser sua neta, mas que lhe fazia as vezes de amante quando ele bebia demais e a Jesusa o expulsava da sua cama. Maldito coração que não resiste a casos tristes, pensou, por isso é que era pobre.

“Carmen!” chamou-a com um grito. “Prepara um café com leite quente e leva ao Cícero, anda, que com este gelo ainda se nos morre.”

Passado alguns minutos, ouviu o tilintar da loiça na cozinha. Sentiu o cheiro do leite a ferver e fechou os olhos: que rica tinha sido a sua infância! A sua avó pastora, mulher tão brava quanto era bondosa; o som do chocalho das cabras que parecia marcar-lhes o passo; o refilar das ovelhas em curtas exclamações iguais aos mexericos da avó e das amigas; as madrugadas que, nas janelas da sua meninice, se mostravam escuras quando era hora de acordar; e as canções que cantava com a avó enquanto o dia nascia e de que se lembrava perfeitamente depois de quase sessenta anos. A Carminho passou por ela arrastando-se a passo de caracol, o café com leite na mão e o copo tapado por um pequeno pires. Ia saber bem ao Cícero sentir algum calor. Talvez hoje ele não tivesse de ficar ali naquele embuste a que chamava trabalho, talvez percebesse que ainda apanhava uma gripe e depois era pior.

A Carminho voltou com o copo cheio, os dedos pálidos e tímidos dentro das mangas do casaco de malha grossa.

“O Cícero não está ali, dona Jesusa” anunciou, encolhendo os ombros fininhos que tremiam.

“Como não?” a Jesusa estranhou. “Então onde está?”

A Carminho voltou a encolher os ombros. Pousou o copo em cima do balcão da recepção, mesmo junto do nariz da Jesusa, e esfregou as mãos como se quisesse que pegassem fogo. Apertou melhor o casaco com um abraço. Lembrava uma criança que vestia a roupa da mãe ou de uma irmã mais velha e mais encorpada. Abriu muitos os olhos e a seguir cerrou-os, em tom conspiratório, e baixou a voz para acompanhar o momento solene:

“Ele ontem ao jantar disse que achava que estavam atrás dele, lembra-se? Que tinha sido polícia e que sabia segredos de quem não devia. Ai, dona Jesusa, será que alguém o apanhou?”

A Jesusa também tinha ouvido essa história, que tinha acreditado na altura ser um delírio paranóico de um pobre mendigo que misturava os medos com as memórias, e que era capaz de ver sombras até no quarto mais escuro. O Cícero parecera assustado, sim, mas depois dera-lhe um beliscão na nádega direita e rira-se quando ela fingira ofensa, dentes podres na cara de uma criança feliz. Acabara de comer a sopa tranquilamente e ela tinha-o visto subir para o quarto que lhe cedia todas as noites, adivinhando no seu «até amanhã» uma expressão descansada. De manhã, ele já lá não estava, deixando no quarto apenas um cheiro nauseabundo que insistia em manter, que fazia parte do seu trabalho, assegurava. Igual a todos os dias. Raio do Cícero, onde estaria? Com os nervos, e quase sem se aperceber, a Jesusa bebeu o leite com café de um gole, como se fosse um copo de whiskey, para ganhar calma e clareza de mente.

«Pois vamos ter de descobrir! Venga, vai ao quiosque perguntar se o viram, e depois ao café, e onde mais te lembrares, sei lá.»

A Carminho fez uma careta. Desta vez iria vestir o casaco, embora a humidade que a esperava lá fora fosse capaz de evitar qualquer lei física e se teleportasse directamente do ar para o tutano. Não estava habituada àquele clima. A Jesusa viu-a sair e lembrou-se do pombo morto. Mau augúrio de certeza!

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