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Relógio partido

Há muito tempo que aquele relógio estava partido. O cuco, eternamente fora, numa imagem alegórica de esquecimento e abandono, olhava para o nada como se estivesse perdido em pensamentos. Do lado direito estava um relógio mais moderno, na parede em frente àquela onde estava colocado o relógio de cuco partido, e fazia um barulho quase insuportável. Ela olhava fixamente para o ponteiro dos segundos, acompanhando o som com o olhar. Tempo (um segundo). Tempo (dois segundos). Tempo (três segundos). Repetia a palavra para marcar o tempo, e lembrava-se de quando o médico lhe disse que ela não teria mais tempo se não mudasse.

Tempo.

Cheirou-lhe a comida e sentiu-se desconfortável. Pelo relógio, era quase hora de comer. Sentiu-se enjoada mas afastou essa sensação. Olhou à volta, a tentar procurar uma saída para não pensar em comida. Não se conseguia concentrar naquela sala sozinha e vazia, só com a companhia de dois relógios e de vários bancos desocupados, o que a fazia sentir cada vez mais fria. Arrepiou-se e fechou melhor o casaco, como para se proteger.

Pegou na revista que tinha ao lado, uma revista qualquer cor-de-rosa que talvez a conseguisse distrair um pouco daquele lugar e daquela realidade. Sentia-se nervosa. Sentia-se à beira de gritar e sair dali a correr. Riu-se – nunca conseguiria correr. Tentou concentrar-se nas fotografias de pessoas que deveriam ser conhecidas, mas que ela nunca tinha visto. Mordia o lábio ansiosamente. Ah, conhecia aquela cara. Afinal, não estava totalmente à margem de tudo. Olhou para os dedos que passavam as páginas da revista. Os seus dedos. Metade do verniz verde tinha desaparecido das unhas, deixando para trás uns restos sujos e abandonados, desleixados.

“Pode vir, Gabriela” disse-lhe a enfermeira.

Ela olhou para cima, surpresa. Não tinha ouvido a enfermeira chegar, num passo silencioso de gato. Levantou-se e deixou-se cair de novo, um pouco confusa, pois tinha conseguido ali chegar sozinha. A enfermeira ajudou-a a levantar-se e sorriu-lhe. Não tinha um sorriso de pena ou de incompreensão como as outras pessoas; sorria-lhe como se ela fosse uma pessoa normal, sem qualquer problema.

“Já peso quase 40 quilos” segredou à enfermeira, com orgulho.

A enfermeira abriu a boca espantada e o sorriso ficou ainda maior. Gabriela quis abraçá-la por esse incentivo tão pequeno mas tão sentido. “Boa”, disse a enfermeira baixinho, como se guardassem as duas um segredo, e nos seus olhos era como se houvesse ternura. Como se Gabriela fosse da sua família. Incentivou-a a continuar. A lutar. A não desistir.

Gabriela pensou que talvez, afinal, tivesse tempo. Talvez, afinal, ela não fosse a representação de um cuco abandonado e estragado, e sim de um relógio que anunciava alto os seus segundos, como um grito pela felicidade de estar viva.

Pela primeira vez, enquanto andava de forma arrastada, amparada pelos braços daquela jovem enfermeira, sentiu-se livre das garras da anorexia.

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