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Qualquer dia é um bom dia para mudar

Um dia vi-a a chorar à saída da casa de banho. Eu era novo na empresa e nunca tínhamos falado, mas não consegui ignorar o rosto triste e o olhar pesado. Um olhar de menos de um segundo, porque a seguir ela baixou logo a cara, escondendo-se.

“Está tudo bem?” perguntei-lhe.

Levantou a cabeça para me encarar. Os olhos cansados mostravam dor e dureza. “Ser pessoa é muito complicado” respondeu-me. Como se fosse uma resposta fácil, como se fosse uma questão óbvia. Que é, acaba por ser depois de pensarmos muito nisso, mas não é o tipo de resposta que eu esperasse de uma desconhecida naquela situação embaraçosa e improvável.

Olhamo-nos durante algum tempo, ela à espera da minha conclusão e eu perdido ainda naquela resposta, a questionar-me, a pensar em tudo o que aquela frase queria dizer.

“Porque é que achas que é complicado ser pessoa?” perguntei-lhe finalmente.

“Porque é.” Encolheu os ombros. “Dependemos de muita coisa que não conseguimos controlar, dependemos muito dos outros, dos humores voláteis, da aceitação.”

“Não dependemos disso para sermos nós, só dependemos disso se nos importarmos com a opinião dos outros. Não dependemos de ninguém para ser quem somos, e o que os outros entendem é problema deles, não tens nada a ver com isso.”

“Não, não só. Por mais que não te importes, não podes evitar o contacto social nem a realidade, e se dependes da opinião, interacção e comunicação com terceiros… hoje em dia dependemos para tudo, somos animais sociais, é impossível não se importar. É muito complicado ser uma pessoa no geral. Porque somos tanto! Mas não podemos mostrar metade do que somos…”

“Como assim?”

“Nunca podemos mostrar todo o nosso passado, todos os nossos segredos, tudo aquilo que nos levou a agir ou ser de determinada maneira. Não conseguimos, precisaríamos de anos, e mesmo assim poderia nunca ficar esclarecido. Isto, claro, quando queremos que a outra pessoa esteja receptiva a nós e nos compreenda, não que nos ponha um rótulo e que deixe de nos respeitar.”

“Achas que somos responsáveis pelo que os outros vêem de nós…” disse eu, a pensando alto.

“E não só, o problema é esse. Se fôssemos responsáveis absolutos talvez fosse mais fácil. Mas a forma como os outros nos vêem, como assimilam a informação que nós queremos passar, como podem ou não compreender-nos… isso não podemos controlar. E, claro, não podemos ser perfeitos, nem adivinhar os pensamentos dos outros, nem controlá-los, nem obrigá-los a estarem abertos e receptivos ao que nós queremos mostrar e dizer, em vez de entenderem aquilo que querem ou que conseguem entender.”

Ela suspirou e olhou à volta. Olhei para o relógio: tínhamos de ir trabalhar.

“Não somos livres, na realidade…” ela sorriu tristemente.

Eu disse: “Claro que somos! Não consegues ser totalmente livre se dependeres dos outros, é verdade, mas começas por ser livre ao sentires-te livre, e ao pensares que não dependes de ninguém. Tudo começa em nós!”

“Não é bem assim…”

“Eu creio que é… Se uma mulher puser maquilhagem não é por ser feia: é porque acredita que pode ser ou ficar bonita.”

“Não, não é um bom exemplo. Não é só por isso que uma mulher põe maquilhagem, pode ser também por se achar feia. Pode ser as duas coisas. Não concordo contigo. Não consigo deixar de pensar que somos tanto, e passamos toda a nossa vida a dividir-nos em partes diferentes, sem nunca nos mostrarmos – nem nos conhecermos a nós mesmos – absolutamente.”

“A beleza é também poderes manter secreto aquilo que não queres mostrar, é poderes ser, mudar, reinventar-te todos os dias sem nunca deixares de ser tu. Cada dia chega com uma nova possibilidade de mudares, de melhorares. E, honestamente, deverias concentrar-te no que és e no que queres ser, e menos no que os outros percebem, vêem, querem assumir ou pensar. Nunca poderás controlar tudo, é inevitável que as pessoas vejam e entendam o que querem, se te preocupares com isso nunca vais ser tu, nunca vais melhorar, nem evoluir.” Sorri-lhe: “O bom disto tudo, o bonito, é que somos várias coisas, somos tantas coisas, e mais ainda: somos nós sozinhos, não precisamos da aprovação de outros. Não dependemos de ninguém!”

Ela não me ouviu. Só disse: “Sim, talvez. Poderia ser bonito, mas na realidade é apenas trágico.”

De repente, pareceu-me ridícula toda aquela situação, aquela conversa filosófica em frente à casa de banho. Quis convidá-la para um café, para falarmos melhor. Não o fiz. Senti um aperto no coração quando ela sorriu a modo de despedida e me virou as costas, voltando para o seu trabalho. Soube que seria a última vez que a veria.

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