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Os homens sem história

Cristo disse que haveria sempre pobres. O apóstolo Paulo explicou o que era a caridade e o auxílio ao próximo. Hoje fala-se de solidariedade, de consciência cívica, de voluntariado. Uma dupla corrente atravessa a Idade Média, uns continuaram a sê-lo, na sua expressão mais viva e outros, animados pelo fermento evangélico e estimulados pelo movimento franciscano, tentaram conciliar a abjecção da miséria vivida com a virtude da pobreza e aliaram-se nas obras de misericórdia.

Vamos, então, tentar perceber a diferença entre pobres e marginais, pois ambos poderiam ter proveniências diferentes e as suas conotações são ainda mais difíceis de definir e limitar, encontrando-se claros cruzamentos ao longo do seu percurso de vida.

Os pobres

São aqueles que, de uma maneira permanente ou temporária, se encontram numa situação de fraqueza, de dependência, de humilhação, caracterizada pela privação dos meios variáveis, segundo as épocas e as sociedades: dinheiro, relações, influências, poder, ciência, qualificação técnica, honra, capacidade intelectual, liberdade e dignidade.

Encontramo-los nos campos e nas cidades, onde o crescimento urbano e a riqueza material tornaram a pobreza um problema estrutural. Eram os camponeses, assalariados rurais e urbanos, os sem emprego, os incapacitados, os órfãos, as viúvas, os velhos e os pedintes. Existiam vários graus de pobreza involuntária: limiar fiscal, que isentava o pagamento de impostos ao rei; limiar económico, condição do indivíduo que caiu em desgraça; limiar biológico, idade e saúde física e mental para servir a comunidade; limiar social, o fraco e o desprotegido e limiar de sociabilidade, os marginais fora da ordem social.

A pobreza caracterizava-se pela ausência de uma ou mais qualidades essenciais para que o indivíduo conseguisse vingar na sociedade e se pudesse auto-afirmar. Eram identificados como os velhos e mancos e cegos e doentes bem como os mesquinhos, minguados, esbulhados, forçados e vilões. No entanto as comunidades também caíam em pobreza e arrastavam consigo as gentes honradas. Era uma situação diferente dos pobres de nascimento e podia ser temporária. Era a pobreza envergonhada pois eram gentes que não podiam esmolar. Para estes foram criadas as casas de mercê, onde eram acolhidos e resguardados dos olhares indiscretos. Eram-lhes fornecidos alimentos e conforto. Chamavam-se mercearias.

À ausência do ter juntava-se a consciência do não ser. O pobre começa a exigir uma maior justiça social e o reconhecimento da dignidade humana. Tal ficou a dever-se à sua mobilidade, ao ideário da pobreza evangélica e às Ordens menores de Francisco de Assis e Domingos de Gusmão. A mobilidade era um grito de revolta individual dos mais fracos contra os poderosos. Os eremitas e os emparedados eram chamados os pobres de vida era uma pobreza assumida e integradas nas ordens religiosas. Outros, os irmãos conversos, viviam no exterior dos mosteiros, despojando-se do mundo. O pobre passa a ser conhecido por Pobre de Cristo. Uma das funções da igreja era dar conforto aos miseráveis da sociedade. A prática da caritas era uma manifestação de amor ao próximo para todo o cristão e era apregoada nos sermões, como medida pedagógica de salvação da alma. O pobre era o intermediário para as portas do céu e a eles estava destinado o fim melhor, a recompensa. As carências económicas eram muitas das vezes, com a debilidade física, a idade, a viuvez ou a orfandade, a razão da queda em pobreza de homens, mulheres e crianças. Esta situação preocupou os soberanos que tomaram medidas para colmatar e evitar que se repetissem. Além das mercearias já citadas, foi fundado um hospital para homens e mulheres honrados que caíam em pobreza, os pobres envergonhados, impedidos de ter a sua vida anterior, contemplado na 1ª Lei da Sesmarias.

Os marginais

Era um grupo que não possuía nem independência económica nem direito de cidadania. Podiam ser assalariados de diversos tipos, mas um grupo maior é de elementos pouco estabilizados, inclinados para as migrações, sem relação profissional ou produtiva durável. Tem uma fronteira flutuante onde a rejeição e a aceitação andam de um lado para o outro. Não têm função permanente, nem vida social estável. Temos que cortar deste grupo os criminosos vulgares, os ladrões, os homicidas e os traidores e incluir a falsa mendicidade, a prostituição, os saltimbancos, os jograis e outros grupos do mesmo teor, que são muitos.

Os falsos mendigos eram aqueles que não tinham ofício, bens ou senhor, sendo apelidados de maus homens e sujeitos à expulsão. A errância provocada pela oferta e pela procura acompanhava a mendicidade temporária bem como a mendicidade crónica dos falsos pedintes. Estes eram um perigo para a sociedade trabalhadora que não os via com bons olhos, formando grupos de vagabundagem. São criadas leis que proíbem a mendicidade quando existe capacidade de trabalho. A única indigência oficial era a invalidez do indivíduo atestada pelas autoridades municipais. Os falsos mendigos eram inúteis à sociedade e não estavam contemplados na assistência caritativa tendo- se tornado num flagelo.

A prostituição

O mundo da prostituição era quase exclusivamente feminino. A mulher surge associada a uma família, do pai ou do senhor, em solteira e do marido, se casada ou viúva. A mulher estava muito condicionada e as opções que tinha para fugir a este jogo eram sempre mal vistas na sociedade. A violação devia ser vulgar, por parte do senhor da terra, do clérigo, das autoridades, de todo o tipo de homens. E era praticada com todo o tipo de mulheres. Os reis publicaram leis que castigavam o violador, mas a sua execução tornava-se difícil. Caía a infâmia sobre a família ou sobre a mulher, tornando-se presa fácil da marginalidade, o que fazia com que não houvesse denúncias. As jovens que rompiam com as estruturas familiares frequentemente caíam na prostituição. Os nomes, porque eram conhecidas vários: mancebas, soldadeiras, mulheres do segre, barregãs e putas. Habitavam na rua, na rua da putaria, ou mancebia e usavam um vestuário que as distinguia das mulheres honestas. Era-lhes proibido o uso o ouro, prata e adornos no vestuário, nos véus e nas camisas. Trabalhavam também nas estalagens, nas tabernas e nos caminhos ou arraiais militares. Por vezes acompanhavam grupos de jograis e saltimbancos. Podiam ser açoitadas publicamente, nos pelourinhos, juntamente com o cliente, desde que não fosse nobre.

A boémia

O mundo da boémia era pertença de todos. O jogo era a causa do empobrecimento individual e das perturbações de ordem pública. O vício era tão forte e estava tão enraizado que vários monarcas se pronunciaram sobre esta calamidade, soltando leis e medidas que podiam ir até à hipoteca de bens e animais. Os taberneiros, os rufiões e os jograis eram vistos com maus olhos porque incitavam a hábitos pouco saudáveis.

Os escravos

Tinham proveniência islâmica devido ao resultado das guerras entre cristãos e muçulmanos. O prisioneiro nobre e culto era tratado com alguma consideração pelo novo senhor, vivendo com ele no paço. Os mais humildes desempenhavam tarefas domésticas ou ligadas à agricultura e ao artesanato. O estatuto jurídico era de um objecto que o senhor podia vender, trocar, castigar ou até matar. A alforia era o desejo destes homens que pretendiam voltar às suas origens e famílias. Podia ser comprada ou concedida pelo dono. Outras vezes bastava abjurar a sua religião e o caminho para a liberdade estava aberto. Os escravos oriundos da África Negra remontam à época do Infante D. Henrique, no Rio de Ouro. O papa deu o seu aval para a captura e escravidão, tendo como objectivo o lucro imediato, pois trabalhavam em tudo o que fosse necessário. D Afonso V sugeriu que fossem utilizados no povoamento das regiões desertificadas do reino.

Olhando, friamente, para esta resenha histórica, permito-me afirmar que, apesar de terem passados séculos, o mundo se ter alterado, as descobertas terem sido muitas, a ciência ter vencido e as pessoas serem educadas, a mentalidade pouco ou nada mudou. Continuamos a colocar barreiras entre as pessoas, catalogamos tudo e todos, as mulheres ainda não têm o papel de igualdade que merecem e a cor da pela ainda é um estigma. O mundo do jogo não se alterou, os vícios são mais modernos, mas continuam e a prostituição adquiriu outras formas, mas visa sempre a satisfação do cliente. Idade Média ou século XXI, onde está a diferença?

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