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O terreno da minha vida

É um homem de ordens. Jantar às 18:30, em dias de festa e, por especial favor, passa para as 19:59, mas já vem com um sermão de que às 21h quer estar na cama e depois não tem tempo para fazer a digestão.

Em tempos, chamei-lhe Salazar, não na cara, porque será sempre o avô preferido. Fazia-me confusão a sua forma de amar, mas via que o seu corpo era a expressão de muito desse conteúdo.

Tem uma orelha cortada pelas unhas afiadas de uma freira, história que me contou em pequenina.

Na cara, rugas fortemente marcadas de uma doença em criança que não foi curada.

Um feitio especial e uma forma caricata de mostrar à sua esposa que a ama.

Hoje, saiu-se com uma e disse-lhe que a sopa estava branca, ela fez-lhe um reportório de todos os ingredientes que continha e depois fez-me sinal, rindo-se, que ele baixava a bolinha.

Riram-se os dois e suavemente deram dois beijinhos curtos, como costumam fazer sempre que se encontram.

Ele não atirou a mais habitual e não lhe perguntou se queria colo, no gozo, claro, mas ouviu uma minha. Assim só num lar XPTO.

Ele não percebeu a expressão e soltou uma o mais idêntica possível.

Gosto de pessoas, assim que, apesar de serem analfabetas, criam uma luz improvisada na casa de banho, enquanto esperam que alguém a venha arranjar.

Não perguntem porquê, que não foi ele próprio que o fez, porque, aos seus olhos, um interruptor não tem piada nenhuma, quando comparada com uma lâmpada enterrada em areia que dá luz.

O senhor que em tempos teve barba, pera e bigode, hoje apara-a com amor para não nos picar e diz que tem de ir à Horta cultivar para comer.

Mentira, ele é que sempre viu na horta uma escapatória para a vida no campo que desejava ter.

Ensinou-me grande parte do que sei hoje.

Explicou-me que devemos ignorar os nossos amigos imaginários e que, quando é para a bebedeira, temo-los às carradas.

Nunca percebi se é feliz. Às vezes, dizia, quando me via a dormir no sofá, e nunca mais me disse a célebre frase: “minha menina, as tuas maminhas são minhas e da avó, não as dês a ninguém.”

O meu avô é o terreno que nunca precisa de pousio, porque às 4 da manhã está a tocar o despertador para comer as sopas de cavalo cansado e ir para a horta.

E daí saí sempre fruto.

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