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O som da despedida

O ruído dos saltos dos sapatos no chão de madeira. Toc. Toc. Toc. Batiam no chão com força. Com segurança. Bastava aquele som para se perceber que a figura que acompanhava a força era a de uma mulher destemida e sem desculpas a pedir. O corredor estava deserto e o barulho lembrou-lhe um relógio a contar os segundos para uma desgraça. Quase involuntariamente fez uma expressão de desdém – estava na sede da PIDE, era natural que pensasse assim; naquele lugar, o medo comia os ossos até dos que não tinham nada a temer. Continuou a avançar, sem vacilar, o ruído dos saltos a fazer eco. Levou a mão ao cabelo castanho; era um tique que tinha, ajeitar o cabelo quando se sentia nervosa. Na realidade, ela não precisava de ajeitar nada – estava impecável, perfeita. Nem se atreveria a sair de casa de outra forma.

Uma senhora com óculos da moda estava sentada numa secretária, a bater avidamente nas teclas de uma máquina de escrever. Como se estivesse a descarregar uma grande raiva. Não parou de teclar. Era impossível não ter ouvido aqueles passos que acabaram mesmo em frente a ela – era bastante óbvio que tinha decidido ignorá-los. E ela não estava habituada a ser ignorada:

“Boa tarde” sorriu cordialmente. “O meu nome é Amélia Cortês Albuquerque e fui chamada para…”

“Sim, sim” interrompeu-a a secretária, sem deixar de escrever com raiva na sua máquina. “Sente-se” ordenou.

Amélia olhou surpresa para a secretária. Nem um «por favor», nem um «obrigada». Definitivamente, ela não estava habituada àquele tipo de tratamento. Sentiu o sangue a ferver mas controlou-se; queria ver até onde iria aquela mulherzinha. Sentou-se numa cadeira e olhou à volta da sala. Paredes brancas e um frio de rachar. O retrato de Salazar pendurado. Embora entrasse um pouco de luz pelas janelas, tudo lhe parecia escuro e frio. Talvez fosse psicológico. Vários armários, possivelmente com ficheiros – ficheiros de quem? Sobre quem? Sentiu um arrepio. Corriam rumores de tortura por parte da Polícia Política. Ninguém sabia, mas todos falavam. Pessoas desaparecidas, delatores, tortura, prisão. Arrepiou-se de novo e odiou ainda mais aquela mulher que a fazia passar mais tempo do que necessário naquele lugar de desespero.

A secretária – ou seria outra a função dela? – deixou de bater nas teclas e olhou para ela. Silêncio. Frio. Olhou para Amélia de verdade, deliberadamente, como quem quer mesmo olhar. Não havia um reflexo, um fingimento sequer de simpatia; os olhos castanho-escuro por detrás dos óculos esperavam criar constrangimento. Mas Amélia conhecia aquele truque, conhecia bem os sádicos que adoravam rebolar na mais pequena ilusão de poder. Devolveu-lhe o mesmo olhar forte, olhar de quem olha, e juntou-lhe algum desprezo, sempre com o sorriso cordial com que a tinha cumprimentado. A secretária não sorriu. Desceu e subiu os olhos, analisou Amélia de cima a baixo e fixou-se nas pupilas cinzentas dela. Amélia imaginou que deveriam ter aproximadamente a mesma idade.

“Foi chamada aqui para prestar declarações sobre» leu um papel «o senhor Carlos Louro Lopes.”

“Sim, é colega do meu filho na faculdade.”

“E além disso, não é um comunista que escondeu em sua casa?”

Amélia inclinou um pouco a cabeça para o lado, como um pássaro que procura ouvir melhor o mundo. Curiosa, pensou que pelo visto a PIDE era bastante directa. Mas quem seria aquela pessoa? Ela tinha pensado que iria falar com algum militar ou polícia.

“Não” sorriu, embora sentisse o olhar a gelar, o tom da voz a tornar-se mais duro. “O senhor Lopes não esteve escondido em minha casa, apenas a frequentou enquanto colega do meu filho. E não é do meu conhecimento que ele tenha vínculos comunistas,” quase engoliu em seco, como se apenas dizer aquela palavra a pudesse levar à prisão de Peniche “ou que seja favorável a qualquer outro…” procurou a expressão certa “inimigo do Estado.”

A secretária fez um esgar. Amélia observou os seus olhos quase pretos, pequeninos como azeitonas anãs, escondidos atrás daqueles óculos que lhe lembravam as asas de um cisne. Não se tinha enganado quanto ao sadismo e à ilusão de poder; a fúria que viu nos olhos daquela mulher só podia significar uma de duas coisas: ou uma cegueira efervescente pela superioridade de Salazar e o devaneio de ser, por isso, uma poderosa peça no Estado Novo, ou um ódio visceral a pessoas que tivessem mais posses do que ela.

“E quanto ao seu filho?”

A pergunta apanhou-a despercebida: “Qual deles?”

“O que a senhora diz que estudou com o Senhor Carlos Louro Lopes, obviamente.”

“O meu filho está bem, obrigada,” o sorriso a vacilar, a irritação a rastejar, a invadir-lhe cada vez mais a língua, a sitiar-lhe o bom senso.

Levantou a sobrancelha e dirigiu um olhar cru à secretária. Amélia era uma mulher com quarenta anos, oriunda de uma família rica e viúva de um homem ainda mais rico. Por todos estes motivos, Amélia sentia – e sabia – que era diferente, que podia comer o mundo, se assim o desejasse. Sabia que podia fazer o que bem lhe aprazasse com a sua existência – e, no fundo, imaginava que também com a dos outros. Sem dúvida que uma mulher como ela não estava habituada a prestar contas a ninguém, e muito menos ao seu país.

“Não foi isso que perguntei” a secretária olhou-a de novo, um esgar de desprezo, um sorriso sarcástico e maldoso a pairar-lhe nos lábios. “Peço que responda às nossas questões se não quer ser acusada de insubor…”

“Conhece o Tenente Rodrigo Cortês?” perguntou Amélia, como se se tivesse lembrado de repente, interrompendo-a.

Era a vez da secretária ser apanhada de surpresa, sem perceber. Repuxou os lábios para dentro num claro sinal de quem não gostava que lhe cortassem o discurso a meio.

“Sim, conheço.”

“Então, por favor”, Amélia enfatizou a boa-educação com um tom duro e o sorriso mais falso que conseguiu, “peça-lhe para vir até aqui cumprimentar a prima Amelinha.”

Os olhos da secretária pareciam pratos. De espanto, de medo, de respeito – talvez fosse um misto de tudo. Amélia sentiu-se satisfeita com o desespero da secretária. O seu grande trunfo: o seu primo, que era um oficial militar e se tinha resignado a fazer parte da PIDE – ou, pelo menos, era essa a história em que ela preferia acreditar. Não era propriamente próxima de Rodrigo, mas a relação de sangue era suficiente para pôr na ordem aquela secretária que ela considerava estar a ultrapassar os limites. Quem pensava ela que era?

“Ah… Hmm…” A secretária mexeu nos papéis, completamente vermelha. Amélia conseguia sentir-lhe a voz nervosa e sorriu de felicidade. Um predador que cheira o medo. “Não sabia que era prima do Tenente. Lamento incomodá-la. Claramente que não… que esta… entrevista, digamos, não é…” A secretária suspirou, sem saber o que mais dizer para sair daquela situação.

“Como disse, o Sr. Lopes estuda com o meu filho mais novo. Esteve em minha casa, obviamente, apenas e só para estudarem juntos, como é natural os jovens fazerem. Entretanto, não voltou a aparecer em casa, há muitos meses que não vemos o Sr. Lopes, e penso que o meu filho comentou que ele teria desistido de Medicina.”

“Compreendo” a secretária olhou para ela, com um sorriso meloso, a tentar ser demasiado simpático.

Amélia sentiu nojo. «Como o medo muda uma pessoa», pensou, os olhos semi-cerrados de irritação e os lábios virados para baixo, numa expressão grave e de seriedade.

“E devo dizer, também, que nunca, das várias vezes em que o Sr. Lopes esteve em nossa casa, lhe vi qualquer comentário contra o regime nem nada parecido. Nem nós daríamos essa confiança.”

“Claro, claro” a secretária voltou a sorrir. “Sim, claro que não.” Mexeu nos papéis e, sem aviso, levantou-se. “Agradeço-lhe o seu tempo e importante ajuda na resolução desta questão. Peço-lhe, em nome de Portugal, que nos contacte caso tenha mais alguma notícia ou informação acerca do Sr. Carlos Louro Lopes.”

Amélia levantou-se também, anuiu com um simples e elegante gesto de cabeça e mostrou, nos lábios, um sorriso superior.

“Obviamente” confirmou.

Saiu da sala de queixo erguido e um brilho perspicaz e rebelde no olhar. Mais tarde, ao recordar esse episódio da sua vida, deixaria de fora a vontade de chorar e as pernas que lhe tremiam, esqueceria as náuseas que quase a obrigaram a encostar-se à parede. A roupa sofisticada e cara que tinha escolhido para aquela ocasião pareceu-lhe incómoda. Ela era uma mulher valente, odiava sentir-se afectada quando saía grandiosa de uma situação, mesmo que fosse uma migalha na luta pela liberdade. No caminho de volta, que lhe pareceu infinitamente mais curto, a força do caminhar não aparentava ser a mesma, embora, na sua alma, tivesse ainda maior intensidade e mostrasse maior dignidade. À saída, o sol de Abril bateu-lhe nos olhos e teve de pôr os óculos de sol. Deixou o ar sair do peito e sentiu o calor a bater-lhe na cara enquanto caminhava até ao Chiado.

***

“Está tudo combinado” ela beijou-lhe os lábios. “O Mateus tratou de tudo, nem sequer eu sei, para o caso de…”

Ele silenciou-a abanando ligeiramente a cabeça. Não sabia se do momento ou do escuro da noite, mas parecia tão mais velho do que os vinte anos que tinha. Ficaram sem falar. Olhavam-se, vacilando perdidos entre o que poderia acontecer de mal e o preço a pagar por tudo correr bem. Fosse como fosse, eram duas espécies de morte, duas espécies de tortura. O silêncio pesava tanto que mal conseguiam respirar, as possibilidades apertavam-lhes os órgãos e não os deixava mexer. Só se olhavam. Só se olhavam. E depois ele sorriu como quem se agarra à esperança de que um dia o mundo irá mudar. Tocou-lhe suavemente nos lábios, como se o tempo não significasse nada.

Mateus, o motorista, olhava para aquele segredo que durava há anos. A noite estava profeticamente fria. Carlos abraçou Amélia por última vez, de olhos fechados, e cheirou-lhe o cabelo, tocou-lhe a pele do pescoço e apertou-a contra si. Soltou-a e entrou no carro sem voltar a olhar para ela. Mateus acenou-lhe brevemente e entrou também, fingindo não perceber as lágrima de Amélia. Na gravilha, o ruído dos pneus a afastarem-se. Amélia lambeu o sal e percebeu que fazia muito tempo que se tinha esquecido do som e do sabor das despedidas.

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