Acto I
“A vida não se perdeu!” Não só não se perdeu, como ganhou contornos de genialidade, limites de euforia, num decadente Outono, num final de uma das décadas mais emocionantes do século XX, à escala global. Cenas de 1929, palco: Madragoa, alma palpitante de um já quente coração lisboeta, garrido pulsar de tradição lusitana.
Numa altura em que profecias se escusavam, deitando as cartas da vida à sorte, sentia-se o cintilar de comuns mortais à procura do seu destino. A Raul Solnado, a primeira carta a ser virada foi a mais desgostosa do naipe das que veria para o seu destino. Nem gatinhava, quando o sentimento predominante se revelava em secas lágrimas, expresso na cara de um bebé que reclamava orfandade violenta – a mãe morrera-lhe aos dois meses de idade, no término da louca década, num Natal que era suposto ser santo.
Batalha desigual teve de viver, interpretando uma infância de felicidade pontual, sob olhar do capataz pai e da sua boa assistente madrasta. Afectos suficientes, mas de amor não sentido, Solnado procurava refúgio nos olhares, na simpatia, na educação, nos espectáculos (não falhava nenhum). Enquanto isso, desdobrava-se em trabalhos na vassouraria que o pai tinha e simultaneamente estudava na área de contabilidade, numa escola comercial. Gestos simples evidenciavam uma entrega não facilmente comparável, exacerbando uma excepcional vontade de singrar – respeitando ou não o sangue que lhe aquecia as veias, obedecendo ou não às sisudas leis de uma sociedade, então, apertada.
De delicadeza singular, Raul dedicava-se involuntariamente às contas (que úteis seriam para prolongar o legado profissional do pai), ignorando, a custo, a vibração consciente da medicina, candeia que lhe deveria alumiar o caminho, todavia, incandescente, sobreposta ao inquestionável brio que mantinha por ter simplesmente que ser assim. A delicadeza singular que lhe faltava, por vezes, em casa, onde a revolta se sentava a seu lado e o fez retirar, como o mesmo disse outrora, “poderes” à madrasta, imagem turvada pelas cores de uma mãe, de quem nem o cheiro podia eternizar. Os seus verdes anos eram assim, descoloridos. Da vassouraria do pai, passou ainda por uma loja de móveis – novo momento improfícuo, mas desaventura de breves instantes. O seu verdadeiro momento ainda estaria para vir.
Acto II
“Olha, pai, vou para o teatro!”, fora, sem saber, a primeira didascália que acertaria no seu percurso, até então. A contracena, do seu pai, fora reconfortante: “Segue o teu destino. Terás sempre aqui o teu lugar.” E Raul voou. As intenções fervilhantes exibiam-se, porque Raul sabia que tinha, pela primeira vez no seu tempo, a oportunidade de agarrar o seu momento. A experiência no Maxime, pela mão de Vasco Morgado, fora, na prática, apenas de figuração, à qual se seguiram papéis pequeninos para a gigante vontade.
Cenas de 1955, palco: Martim Moniz, confluência de culturas num centenário teatro a que todos chamavam Apolo. Foi sob o nome de divindade da mitologia greco-romana que Solnado figurou na peça “Bota a Baixo” – interpretando o icónico Cantinflas -, ao lado de Alves da Cunha, que tanto admirava. António Silva achou-lhe piada e o prestígio crescente era uma questão de tempo, como que consequência natural, ao contrário do que o nome da tal peça poderia profetizar. Tamanho profissionalismo evidenciado era também a súmula de um trabalho de casa distintamente feito por Raul, que desde sempre se sentira apaixonado por Teatro, que sempre namorara até então, sem se deixar, porém, envolver, como se de platonismo se tratasse. Com “Bota a Baixo”, os platonismos morreriam. Por breves instantes, o gosto de ainda ser relativamente desconhecido do grande público também. É que ele percebeu, quando o aplaudiam, que estavam verdadeiramente embevecidos pela sua actuação. Ele percebeu, quando voltou à mão de Vasco Morgado, que a sua imagem estava maturada e o seu nome crescera.
“Tia Charley”, a peça que se seguiu, trocara as voltas de Raul. Sabor agridoce de quem achou que o seu cunho no teatro já estava suficientemente carburado e era chamariz que baste para encher salas. Enchiam, sim, pela qualidade do texto, um clássico inglês. Ainda assim, pouco tempo depois, “A Guerra” sairia. Foi o texto, com nome bélico, que provocou as gentes e as fez, definitivamente, sentir Raul.
Acto III
“Nós, os do Teatro, somos vendedores de sonhos!”, o grito veio, em 1961, em conjunto com um texto assinado por Miguel Gila, intitulado “A Guerra”. Belicismos à parte – Portugal guerreava em África – aquele disco ficaria sempre como o seu cartão-de-visita. “A Guerra” despoletou a sua imagem, as histórias que toda a gente queria que ele contasse. O disco rodava por todas as rádios, foi inclusivamente um recorde absoluto de vendas. Todavia, caracterizou em demasia Solnado. Caricatura criada, em “Vamos contar mentiras”, o pequeno génio do riso, que fazia o mundo extasiar, lembrou sempre que, no final dessa peça, o auditório insistira por mais rábulas. Um dia, ao não lhe ser possível conta-las, deparou-se com a sua carrinha apedrejada.
Momentos em que sentia a sua imagem estrangulada, Raul fugia para o Brasil, como que evasão programada, país que foi também o seu irmão e um porto de abrigo, onde explorava também a veia “one man show” e dominava plenas plateias, ávidas de gargalhadas, com um sucesso arrebatador. O Brasil fora não mais do que isso. O seu coração estava em Portugal, seu eterno palco predilecto, feliz – relação quase matrimonial. Outras línguas afirmavam que era mulherengo. Foi precisamente no Brasil que atiçou a actriz Joselita Alvarenga, com quem teve três filhos. Não podia haver melhor imagem do que esta como mostra do que eram estas duas nações para si.
Poisou mais insistentemente por Lisboa, quando este soldado decidiu fazer do Teatro Villaret, que abriria em 1965, o seu quartel. Baptizara-o de acordo com a sua especial preferência por João Villaret e esta tentativa de criar a sua própria companhia ligava-o, sem muito querer, à infância dos números. Começava a ser o Raul dos sete ofícios. Aquele figurante do início dos anos 50 tinha sido a libertação de um incómodo desnorte. Os cenários, conheceu-os a todos. O Teatro era a caixa forte, mas o cinema tinha-se também instalado no final dessa década, quando, em dois anos, participou em dez filmes. Juntava-se, agora, o trabalho que menos desejara, o de empresário, que faria dele um equilibrista exímio de finanças.
Faltava-lhe a televisão, a caixa mágica que ganharia pó na casa de inúmeros portugueses nos anos 60. Ramiro Valadão, presidente daquele tempo da RTP, tratou disso: Zip Zip, a interjeição que nada queria dizer foi o consenso a que ele e os compinchas (Fialho Gouveia e Carlos Cruz) chagaram, numa de muitas viagens Porto-Lisboa, em automóvel. Se houvesse ainda quem não o conhecesse, esses seriam absolutamente driblados por Solnado, que, com este talk-show, gravado no seu quartel, entreteu, durante sete meses, os serões das segundas daquela Primavera marcelista.
Acto IV
“Ao longo da vida devemos deixar um rasto de luz por onde passamos!”, fora filosofia-guia da vida, que de tão cheia, quatro actos seriam paupérrima síntese do que Solnado representou, representa. Essa luz que irradiou, que pelo menos tentou sempre irradiar, não fez com que deixasse de achar, ainda em vida, surpreendente o facto das suas interpretações, criações e performances terem escapado sempre à PIDE. Não seriam, porém, regimes que o assustariam. Garantidamente. Assustou-se, quando em 1982, trabalhava na Venezuela e sentiu o seu coração falhar. Um enfarte que revelava a “vida louca, mas saborosíssima” que estava a trilhar.
Não parou. Raul Solnado tinha, sem que viessem profecias à tona, ainda vinte e sete anos de aventuras pela frente. Fez ainda muita televisão, algum teatro e participações cinematográficas não menos importantes. Em 2002, foi agraciado pelo Estado, com a Medalha de Ouro da Cidade de Lisboa. Derreteu-se, em 2004, quando Jorge Sampaio o condecorou com a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique. Honrou a classe a que deu a vida ao fundar a Casa do Artista, a que dirigiu até não conseguir evitar sentir o seu coração por um fio.
Joana Solnado, sua neta, também ela devota dos palcos testemunhou que foi com o seu avô que aprendeu que “há pessoas na vida que nos marcam de uma maneira estrondosa”. Portugal percebeu-o particularmente, quando ouviu o pior dos discos que poderia ouvir, referente a Raúl. O da sua morte. O da guerra que não se pode, à partida, vencer categoricamente. Raul Augusto Almeida Solnado era, desta vez, notícia para todos, ao morrer vítima de um quadro clínico cardiovascular grave. O coração falhara irremediavelmente. A ele, a quem muitas vezes adjectivaram de irremediável. Perante a luz do soldado do riso, valerá, certamente, a pena lembrar palavras que são suas: “Há dois tipos de discurso – o pequeno e o grande. O pequeno é obrigado. O grande, muito obrigado”.
Belo texto, que grande pessoa foi Raul.