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O menino

Era o dia de ficar com ele. Gostava mesmo do menino, sentia-o como seu. Não o tinha gerado, não sabia o que se tinha passado e também não o tinha parido, mas era com ela que ele tinha a maior ligação e que a tratava por mãe. Ele não sabia, mas ela, um dia, quando ele pudesse entender com clareza, ia contar-lhe. Mas não era naquele dia nem naquela semana. Iam ser dias de partilha e de muito amor, e brincadeiras e de risos. Era ainda tão pequeno, que tudo era novidade e soava a muito bom.

O pai não o veio entregar. Foi a outra madrasta, com lágrimas nos olhos que o depositou nos seus braços. “Cuida bem do nosso menino. Ele está um pouco constipado. Tens tudo na malinha. Depois telefona, tá? Beijinhos. Boa semana.” Era quase sempre assim. O menino era delas, das duas mulheres que o criavam, à vez, e que tentavam o seu melhor. A separação era sempre difícil e dolorosa. Abriu a malinha. Tudo arrumado, com amor, enrolado em carinho, perfumado com gosto e deixado com saudade.

Era um mar de lágrimas, quentes e salgadas que regavam o petiz. Ele dava os braçinhos, contente e dizia sempre, ma, ma. Estariam a baralhar a cabeça ao menino? Duas mães e nenhuma o era? Ele ainda tinha que crescer muito para fazer os seus juízos de valor. Enquanto pensava nisto ele adormeceu serenamente. Ficou a vê-lo dormir. Que tranquilidade que emanava. Preparou a comida e a semana que se avizinhava.

Tudo correu, como de costume, sem sobressaltos nem acontecimentos de maior. Era sempre a semana curta. A outra também sentia que a sua não-semana era longa. Ela levou-o a ela. Com a malinha arrumada com espaço para os miminhos, para as recordações e os desejos de o receber de volta. Foi o pai que abriu a porta. Novamente abraçinhos que se dão, colos onde se sentam e almas que choram e se sentem espoliadas. Sempre educado e atencioso, fez-lhe uma festa na cabeça e perguntou-lhe pela semana. Ele ainda não sabe falar, mas sabe rir e dar abraços e beijos. E é um especialista.

Regressa a casa. Dor no coração. Recorda-se de tudo: a chegada à maternidade, o nascimento e a fuga. Sem palavras. Que mãe abandona um filho? Aquela conseguiu. Onde andará a sua alma? Como conseguiu? Não entende. O pai chora e desespera. A polícia não a encontra porque não quer ser encontrada. Consola o pai, conforta-o e apaixona-se. Cria o menino, lava-o, dá-lhe de comer, veste-o, ama-o. O pai está perdido, desesperado, confuso. Ela e o menino enlaçam-se na vida.

O pai recupera, levanta a cabeça e recomeça a vida. Conhece a outra, conta-lhe a história e ela também se apaixona. O menino viaja todas as semanas. Ele não o quer tirar a ela. Combinam as trocas. Uma semana a cada uma das não-mães. Ficam contentes. O menino vai crescendo, saudável e feliz. Com ele vai sempre aquela malinha, que a mãe verdadeira tinha preparada. São 3 mães em jogo, duas físicas e uma de memória. Ele ainda não sabe nem precisa de saber. O que ele quer são braços que o recebam, beijos que lhe dão e colinhos onde se possa sentar.

O menino vai crescer e um dia vai saber que foi o amor que o criou, não foi a dor de parir, mas aquilo que o coração, das duas, conseguiu dar para tapar aquele enorme abismo do abandono. O menino é das mães, é do pai, é do grande amor e da enorme capacidade que o ser humano tem de se saber inventar.

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