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O limite do nada – Parte II (o Antes)

Aqueles olhos não são meus.

Os risos que enchem a casa-de-banho parecem presos num túnel. A música está sufocada, mas sinto-a no bater do peito.

Observo curiosa o meu reflexo deteriorado. Aqueles olhos não são meus.

Merda, bebi demais.

Volto para a pista.

Nunca cheguei a casa.

Essa noite era o seu maior fantasma. Ao princípio, dava-lhe voltas, reinventava, revirava, recriava, recompunha. Re-re-re. Re-fazia tudo. Até abrir os olhos e a realidade quase a matar. Quase. No limite da morte e da loucura, paradoxalmente tão viva e tão lúcida. O ódio de sentir tanto tudo quando precisava de não sentir nada. O ódio de ver o mundo por um pequeno furo numa madeira roída. O mundo era um mato e mais nada. Gritar e nada. Chorar e nada. Rezar e nada. Surdez. Fechar os olhos e re-re-re. Repete tudo de novo.

Ele estava bêbedo quando me violava.

Não, mentira, não estava. Violava-me sóbrio.

E ria-se.

Não contou os anos. O tempo deixou de importar. Desmemoriou-se da dimensão do Universo. Desmemoriou-se da certeza de que, naquele mesmo momento, existiam outras pessoas noutro lugar qualquer, e que lavavam a loiça a murmurar canções ou que contavam cêntimos que não chegavam para comer no dia seguinte ou que se beijavam pela primeira vez. Absurdo. Enterrava as unhas na pele e sangrava de tanta raiva. E talvez fosse por esses cortes que a esperança conseguia voltar a instalar-se, queimando-a por dentro. A esperança dava-lhe náuseas. Vomitava, extravasando tudo aquilo que não conseguia nomear, dizer, sentir. Até que passou a vomitar porque o deus mouco a quem ela tinha um dia rezado parecia querer vingar-se dos pecados que ela não se lembrava de ter cometido. Ele percebeu e não voltou a violá-la. Alguns meses depois, uma bebé. E ela retalhada, rasgada, desmembrada com violência, com gosto perverso. Deus gargalhava. Ela abraçava a bebé chorosa. Há tragédias inomináveis e fins que não acabam, que se perpetuam tortuosa e furiosamente em tudo o que somos.

Não.

Não pode ser. Não.

Não.

A menina não parava de chorar, encolhida num canto, chamando a mãe entre soluços. Era só uma criança, só uma criança. Ela tentava aproximar-se, mostrar-lhe a bebé, tocar-lhe no ombro, consolá-la de alguma forma. A menina afastava-a, tremendo, a voz entrecortada, a garganta rouca. Não compreendia. Nenhuma das duas compreendia.

Nessa noite ele voltou. Passou a língua pelos lábios e desapertou as calças. Olhou para a menina e sorriu: «Despe-te.»

Finalmente. Finalmente.

Vestiu a bebé sem dificuldade. Um babygrow azul e velho que ele tinha trazido há uns meses. Ainda servia. Olhou para a bebé fraquinha e pequenina. Penteou-a com a mão, devagar, trauteando uma música quase sem perceber. Pegou nela com cuidado e beijou-a. Encostou o seu peito ao peito imóvel da sua filha. Sua filha, pensou, que estranho. Colocou-a dentro do saco.

A menina observava-a. Ela pediu-lhe para repetir o plano todo. Abraçou-a.

Esperaram vários dias. O odor doce e podre colava-se às paredes, à roupa, à pele, insuportável e lancinante. Mas ela tinha decidido nunca mais voltar a abrir o saco. Nem sequer olhava para ele. Tinha medo de se desfazer, de abraçar o corpo da filha e nunca mais o conseguir largar, de se enroscar e se meter para sempre dentro do saco com a bebé. Preferia uma morte rápida. Ia ter uma morte rápida.

Esperaram vários dias. Mantinha a dor longe, uma nau intrusa que aguardava nas ondas sem atracar, sem invadir, sem lhe tocar, só à espreita, dançando num mar escuro que em breve ia consumi-la.

Esperaram vários dias. Já não tinha cortes; tinha um buraco tão gigante e negro que a esperança era engolida e desagregada. Estava vazia.

Esperaram vários dias. Quando ele finalmente chegou, ela prometeu-se que nenhum dos dois ia sair vivo.

Já não viu a menina a correr pela neve, o pânico nas pernas, o saco arrastado atrás dela.

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