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O cego

Sentado numa cadeira tocava ferrinhos e viola braguesa. Todos os dias alguém o levava, de manhã, para aquele lugar. Todos os conheciam e, apesar de não ver, estava sempre alegre. Tinha nascido cego e a sua capacidade de analisar o mundo era diferente de quem tinha o dom da visão. O colorido da vida não existia, mas os sons tinham uma paleta que só ele conhecia. A música era o seu pequeno mundo. Tocava qualquer instrumento de ouvido porque nunca poderia ler uma pauta.

Com o passar dos anos, tinha deixado de ser um menino e o homem em que se tinha transformado era alto e encorpado. Já não tocava só os ferrinhos e cantava na sua voz esganiçada. Tinha desenvolvido o seu dom e agora os instrumentos musicais não tinham segredos para ele. A voz tinha ficado adulta e os acordes tinham-se afinado de modo harmónico e leve. Sabia cantar. Soltava uns sons apelativos que tocavam o coração de quem ouvia.

A família nunca soube lidar com a diferença e cego, naquela época, era estigmatizado e considerado um coitadinho. Os braços eram bons e sólidos, mas não serviam para trabalhar. A música tornou-se o seu sustento e a sua ocupação total. De manhã levavam-no até aquela rua muito movimentada, na baixa, onde passavam muitas pessoas e sentavam-no na cadeira. Já fazia parte da rotina. Tocava e cantava. Muitas das vezes encantava. A sua voz subia no ar, leve, deixando marcas de sonoridade doce e infeliz.

Infelicidade era o sentimento que os outros sentiam. Tal como o poeta referiu, só sentiam a dor que eles não tinham. Ele nunca se sentiu assim porque não conhecia o seu oposto, a felicidade. Aquela era a vida que conhecia e que não reclamava porque a tinha aceite. Contudo sorria como se fosse a melhor que tivesse conseguido. Ao fim do dia iam buscá-lo e regressavam a casa. Onde era? Nunca se soube. Pendurada ao pescoço, com uma fita larga de cabedal, tinha uma caixa rectangular, com um orifício, onde as pessoas colocavam as moedas. Era o seu ordenado, a paga por alegrar as vidas tristes que passavam por si.

Um dia chegou ao seu local de trabalho acompanhado. Uma rapariga estava com ele. Desengraçada, com enormes óculos escuros e de presença intrigante. Ele sentou-se na sua cadeira, como sempre fazia e ela ficou de pé. Desta vez não tocou nem ferrinhos nem a viola braguesa. Era um novo instrumento, uma harmónica que chorava canções de desespero e de amores desfeitos. Ela segurava umas folhas com as letras e depois começava a cantar. A sua voz era tão intensa, tão profunda que, quem passava sentia a revolta aquela mulher abandonada que carpia na sua voz.

Rapidamente se tornaram um fenómeno musical. Ela cantava tão bem, tão divinalmente que até as almas mais empedernidas choravam a dor que soava nos ares. Ele, muito composto, de casaco abotoado, tocava vários instrumentos que melhor podiam confortar aquelas mágoas e angústias. “Podes bater à minha porta, mas não passes com ela à minha rua!”

Um dia houve uma troca de posições. Ele estava em pé, tocando orgulhosamente a sua viola, cujas cordas gargalhavam livremente e ela estava sentada. O seu ventre dilatado mostrava que aquelas canções eram tão verdadeiras com a realidade que viviam. As suas caixas, rectangulares, dançavam com tantas moedas que lá entravam e que seriam o sustento de mais uma alma que estava a chegar. “Quero amar-te perdidamente, a ti e a mais ninguém.”

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