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O amor não pode esperar

A cadelinha deve ser tão velhota como o senhor que a passeia. Em idade canina são demasiados anos, mas a cumplicidade nunca se perde e aperta-se cada vez mais. Ele já arrasta os pés e talvez a consciência lhe seja agora mais leve. A sua fiel amiga obriga-o a sair de casa todos os dias e, sem saber, cuida dele com desvelo e atenção. É curioso ver os dois a passear. Fala com ela e a relação que estabelecem é de topo.

Um dia decidi dar-lhe uns dedos de conversa. Em boa hora o fiz. O senhor precisava de desabafar. Contou-me, com voz embargada, que toda a sua vida tinha sido uma farsa. Percebi logo que havia matéria da boa. A canita, que ladra a todos, percebeu a solenidade do momento e sentou-se sem abrir a goela castradora. É pequena, com o pelo desgovernado e o focinho empinado. Tem ar de convencida e gosta de ladrar à janela para quem passa.

Toda a minha existência é uma mentira. Naquele tempo era suposto seguir as regras sem as contestar e foi o que fiz. O meu pai tinha umas terras e a taberna, lá na aldeia. Dizem que era rico e eu fui o que se chama um bom partido. Foi isso mesmo que me aconteceu. O coração partido.

Abri muito os olhos. Seria um casamento arranjado onde os amores estavam desavindos? Ou era a responsabilidade de herança do negócio de família e a prisão que lhe causava? A minha cabeça começou a andar a mil à hora. No entanto, não precisei de esperar muito que ele abriu a torneira do lamento e jorrou o fio da meada. Acertei em tudo!

Casou com a moça mais promissora, o que significava que era a de melhor condição económica. Não havia lugar a sentimentos que esses só servem para complicar e atrasar a vida. O enlace foi marcado e ele só teve de obedecer. “Fui sempre infeliz. Para o meu pai estava sempre tudo mal, mas como era o mais velho tinha de ser perfeito. Descarregava em mim e fui o seu saco de porrada.”

Parou e vi-lhe umas lágrimas bem salgadas a saltitarem nos olhos. Eram carregadas de desânimo e tristeza. “Nunca podia dar uma opinião nem fazer nada à minha maneira.” Agora era a alma que se soltava e saía em pedaços de dor aguda e acutilante. O animalzinho deitou-se porque percebeu que estava para durar. Para ela era igual desde que estivesse com ele. É assim a ligação entre os seres de quatro patas e os de duas pernas.

Não gostava da sua esposa? Nunca houve amor nem compreensão? Mas teve filhos, pelo que sei.” Pensei que era um episódio em que os desencontros amorosos afloravam, mas a profundidade era bem mais sólida. O senhor não se sentia atraído por mulheres e aqueles anos juntos foram uma experiência demoníaca. O pai nunca aceitaria tal coisa e ele calou-se e sofreu em silêncio.

Chega outro velhote que costuma estar com ele nas voltas higiénicas da cadela. Ainda mais caduco, com alguma dificuldade na articulação da fala, mas com um sorriso do tamanho do mundo. Olharam-se e ali havia um sentimento grande, aquele que só serve para se chegar ao drama quando não há a tal correspondência. O que vi foi o clarão da chama que ardia sem parar.

Apaixonados desde meninos não podiam revelar o seu íntimo. Um casou e teve filhos, que era a sua obrigação, o outro, menos escorreito, foi ficando em casa da família na esperança que o seu príncipe encantado o fosse resgatar. E esse dia chegou. Tarde, mas certeiro. Os meninos já eram muito maduros, mas o resto não havia mudado. O sentimento que os unia ficou ainda mais forte.

Quando o meu pai morreu quis logo vender o negócio, mas a minha mulher não deixou. Fui sempre um pau mandado. Eu não queria nada daquilo. Detestava. Quando ela fechou os olhos vendi tudo e vim para aqui, para longe, onde ninguém me conhecia.

Afinal conseguiu endireitar a vida com facilidade, pensava eu na mais perfeita das ingenuidades. Enganei-me redondamente. Os filhos eram uns ditadores e não o largavam. Massacravam o pobre do homem a toda a hora e ele teve de recorrer à justiça. Estão impedidos de se aproximarem dele. Respira profundamente. “Comecei a viver há pouco tempo, porque antes estava morto.

Comprou um apartamento e foi buscar o grande amor da sua vida. Finalmente conseguiram o que desejaram uma vida inteira: a felicidade. A cadela foi uma das netas que lhe ofereceu, porque ela é jovem e desempoeirada e sabe que a vida não quer saber de certas normas ridículas. É a única que o visita e nesse dia o seu semblante é de festa.

Andam, agora, os dois velhotes, de mão dada, quando não há ninguém por perto, a recuperar o tempo perdido. Estão reformados e idosos, o que lhes dá um espaço de manobra muito grande. Vivem intensamente. Ninguém sabe de nada.  Fui uma confidente, um género de padre que estava mesmo à mão. Sinto-me honrada. Oxalá ainda vivam muitos e bons anos.

Agora é que percebo, porque é que a cadelita está sempre a ladrar. No seu dizer, ninguém tem nada a ver com o que se passa naquela casa e quem não gosta tem bom remédio, não come e põe-se na alheta. Tem toda a razão! A felicidade ainda incomoda muito os que andam perdidos neste vale da indiferença.

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