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Mágica

Não sabíamos o nome dela. Ninguém sabia realmente quem era nem de onde vinha, e ela mudava os nomes diariamente. Um dia anunciava “Hoje sou Florencia, do Chile!” e noutro “Aqui chegou a Catalina directamente da Colombia!”, e nos dias de chuva dizia sempre “O meu nome real é Felicidad, mexicana de gema”.

Ela tinha simplesmente aparecido no bar dos meus pais um dia e nunca mais se foi embora. Parecia gostar de nós, de uma maneira que nos sentíamos abençoados por aquela mulher pequenina –  não chegava a metro e meio – mas imponente, de tez muito escura e sem idade, nos dar a sua atenção e sorrir para nós. E todos concordávamos silenciosamente: ela era irreal. Nunca discutíamos a sua existência, com medo de que ela não existisse e de que tudo tivesse sido uma ilusão louca. E depois ela aparecia (ninguém sabia de onde), anunciando o seu nome daquele dia, e devolvia-nos a sanidade e a vida a todos. Tinha uma trança branca na cabeça, comprida, e trazia roupas sempre coloridas, dizia que era para que a morte não a encontrasse.

Um dia uma criança perguntou-lhe a idade. Todos nos calámos, com medo que ela achasse um atrevimento e nos castigasse com a sua ausência, embora a todos a curiosidade mordesse a mente. “149 anos”, anunciou rindo, e contou várias histórias desconhecidas sobre a independência de Cuba, a revolução do Chile, as Ditaduras de Latorre e de Pinochet, e o seu “querido Ernesto, hasta la victoria siempre”. Um outro dia explicou-nos a todos que se lembrava de todas as suas vidas passadas, dos sacrificios maias e das maldições incas. Todos lhe bebíamos as palavras como um gelado saboroso e fresco no Verão infernal latinoamericano, e tinha-se tornado um hábito reunirmo-nos no bar dos meus pais para deliciarmos os seus contos secretos fantásticos e as suas novidades históricas e infinitas. Ninguém sequer pensava em duvidar daquelas palavras sagradas e verdadeiras.

Depois de nos brindar dois anos com a sua presença, apareceu uma manhã no bar e anunciou “hoje faço 150 anos e é o meu último dia como Hortencia, a cubana mais velha de todo o Mundo!”. Vinha a uma hora que não era costume, vestida de preto, com o cabelo até à cintura solto, e com a expressão mais serena que lhe tínhamos visto. Por momentos houve silêncio, mas depois o Sr. López gritou “uma idade assim tão antiga é para celebrar!”. A minha mãe prontificou-se a fazer um bolo, o meu pai ofereceu bebidas a todos, e cada um dos habitantes da pequena aldeia quis contribuir com algo. As crianças apanharam flores e decoraram o bar, com a ajuda dos idosos; todos fizémos petiscos e construímos presentes importantes, tocámos música e cantámos. Hortencia – Catalina, Florencia, Felicidad – ria-se, cantava connosco, batia palmas e acompanhava a dança. Parecia feliz, e esse êxtase transbordava para todos nós.

Às 23h59 ela sentou-se numa cadeira, cansada, sorriu-nos uma última vez e fechou os olhos. Ninguém estranhou quando a mágica e intemporal velhota foi desaparecendo; primeiro o cabelo, depois a cara, o pescoço, transformando-se em fantásticas borboletas e libelinhas que mais pareciam ter vindo de um pó mágico do arco-íris. O corpo dela ia desaparecendo, e cada vez havia mais borboletas, cada vez mais libelinhas, cada vez mais lindas, de todo o tipo, que voavam e pousavam nos narizes dos mais pequenos e nos cabelos das raparigas jovens. As borboletas dançavam com os que voltavam a dançar, as libelinhas esvoaçavam à volta dos que aplaudiam. E quando já nada sobrava dela, da nossa velhota mágica e brilhante, as borboletas e as libelinhas voaram juntas para as estrelas.

Todos acenámos, emocionados, sabendo que aquele dia mudaria todas as nossas vidas. E quando já não as conseguíamos ver, toda a aldeia continuou a festejar.

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Comments 2
  1. ya no me acordaba de las borboletas, las mariposas …
    Fantastico cuento ! siempre dejas nos con las ganas, pero creo es mejor asi que pasarse.

    1. Me alegro que te haya gustado, y espero que pienses que tu foto ha sido bien utilizada jejeje
      Un beso gordo

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