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Lisboa

Debaixo de mim, a calçada irregular, preta e branca e imunda. As ruas cheias de som e de ruído. As ruas cheias de quem visita e de quem vive, de gargalhadas, de músicos amadores com instrumentos de todo o mundo, canções que são de babel, misturas de línguas e sons e cores. Pombos a voar para fora do caminho dos ciclistas, muitos pombos em todas as direcções, e as pessoas nas esplanadas a tapar as cabeças com os dedos abertos. As crianças fascinadas pelas estátuas humanas, douradas e prateadas, que levitam apoiadas numa bengala, magia inexplicável aos olhos gigantes da inocência. A música tinge o ar, capaz de se enfiar pelas janelas e almas fechadas.

O eléctrico interrompe os ritmos e assusta os que atravessam a estrada sem esperar o seu tempo.

Mais à frente, no chão, mulheres pretas vendem amendoins, bolos caseiros e doces africanos feitos de madrugada. Vestem trajes coloridos com desenhos de uma terra que lhes mói o peito com saudades, a alegria sempre pronta na voz alta, a desconfiança nos olhos. Ao lado, carrinhos de gelados que no Outono darão lugar ao ritual de assar castanhas. Do outro lado, um casal vende fruta. Trocam todos ideias, fazem piadas, os sotaques das mulheres pretas carregados de passado, os risos tão gigantes que estão por toda a rua. À porta da loja chinesa, uma empregada brasileira observa as conversas e sorri.

Meninos que vêm da escola agarrados às mãos das mães, pais, avós; adolescentes em encontros com amigos; velhotas que refilam com alguém, empoleiradas no posto da idade, e que ficam incrédulas quando lhes respondem às ofensas. Filas de pessoas cansadas que precisam que o autocarro chegue naquele segundo. Filas de turistas desconfortáveis e perdidos nos próprios mapas. Sentados em bancos de jardins, reformados e desempregados esquecem por momentos a solidão e perdem de propósito jogos intermináveis: “mais um, para a desforra!”

A cidade composta de pessoas que antes não faziam parte dela. Cores e olhos e línguas que são tantos como há no mundo. Caminham as ruas que passaram a pertencer aos seus pés, uns arranham uma língua nova com que agora têm de lidar, outros falam-na perfeitamente. Pergunto-me: como será ter de abandonar tudo? Pais que agarram nas mãos pequeninas das suas filhas, mães que levam bebés ao colo, já nascidos num novo país. Pergunto-me se estas crianças se sentirão do mundo, se se verão como o melhor de vários mundos, se saberão exactamente quem são. Talvez sejam crianças que não terão de crescer sem se sentir de lado nenhum, perdidos entre quem são e quem deveriam ser; meninos que poderão viver sem carregar nos ombros as dores e saudades que pertencem à alma dos pais, longe das memórias que eles não conhecem mas que sentem como um vazio, sem entender porquê. Talvez não tenham de se sentir estrangeiras para sempre, mesmo depois de uma vida inteira a saber-se portuguesas.

Ando pela minha cidade e dentro de mim carrego culturas, cidades, cores, línguas diferentes. A minha casa foi feita de um pai português branco e de uma mãe espanhola mulata. Também eu, por vezes, sou essa criança que não sabe bem quem é, que ainda não percebeu onde pertence.

Na esquina, uma loja de livros antigos. Ou uma loja de lembranças que também vende livros antigos. Expostos em caixas de cartão mesmo à entrada, partilham o espaço com ímanes que têm a forma de eléctricos e com estátuas de santos que brilham no escuro, possivelmente vindos de Fátima, à espera de abençoar quem os queira comprar. Ao lado, lojas fechadas que lembram sentenças. Que são sentenças. Tantos negócios antigos que faziam famílias, agora nada mais que papel de jornal a tapar os vidros, corações partidos e medos. Uma Era que terminou ali. Onde fica a vida?

Olho para cima, para ver o que não é costume ver, que foge ao nosso campo de visão. Não só as folhas das árvores, as nuvens e os pássaros. Também o topo dos prédios, os olhos de quem estende a roupa nas janelas mais altas, de quem nos observa enquanto fuma nas varandas mais perto do céu.

Noutro lugar qualquer do mundo, outra pessoa olhará o mesmo céu que eu. Cruzará os seus passos com os de tantos portugueses que estão longe e aos seus olhos também eles serão estrangeiros, como os que vejo agora, aqui, neste minuto. Décadas de portugueses que também tiveram de abandonar tudo. Décadas de crianças portuguesas que nasceram longe, em países que são os delas mas que não é assim tão simples. Décadas de estrangeiros que nas férias voltam para sua casa, que já não é sua há muitos anos mas que nunca é assim tão simples.

As cebolas roxas e as batatas doces da mercearia indiana têm bom aspecto. O senhor português que é dono do café ao lado, de bigode enorme e avental posto, agradece as maçãs reinetas que precisou à última da hora. Na rua, uma rapariga russa ajuda uma senhora idosa a andar, as duas sorrisos e carinhos, companheiras de conversa.

A cidade composta de quem faz parte dela. De quem veio e ficou, de quem se foi embora, de quem nunca mais voltará e de quem volta sempre. O mundo é muito mais redondo do que aquilo que queremos aceitar.

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