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Julgamento

Na semana passada fomos inundados por mais uma polémica curiosa, daquelas que não serve para nada, mas que nos mostra muita coisa. Joana Vasconcelos foi altamente criticada nas redes sociais pela entrevista que deu no âmbito do projecto “E se fosse eu?”, para a Plataforma de Apoio aos Refugiados, onde disse que levaria uma série de coisas, nomeadamente as suas jóias, iPad, fones, caderno e lápis, lãs e agulhas. Honestamente, ouvindo outras entrevistas no âmbito do mesmo projecto, como a do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, a do Nuno Markl ou do Virgílio Castelo, contra os quais não vi grandes críticas, só me resta perceber que existe um ódio de estimação pela artista portuguesa, e realmente existe.

Ao ler artigos sobre esta mesma “polémica”, nomeadamente aqueles que falam de outros exercícios dentro do género, nomeadamente com alunos de escolas, vejo que as diferenças de respostas ao desafio não são assim tão significativas. Estarão os alunos errados? Estará Joana Vasconcelos errada? Estaremos, muitos de nós, errados? Talvez estejamos todos errados e todos certos, o que me remete para uma questão que acho pertinente, a da total e absoluta intolerância que se tem manifestado nas sociedades, nomeadamente com o acesso às redes sociais. Todos somos juízes, todos somos carrascos, todos somos artistas, escritores, professores e tantas outras coisas, só porque nos escondemos atrás de um ecrã e balbuciamos umas coisas.

A sociedade e o mundo cresceram, evoluíram e criaram novos meios, assim como novas necessidades. Há 40 ou 50 anos, tenho a certeza, muitos refugiados trouxeram para Portugal os seus álbuns de fotografias, livros e outros objectos que lhes eram significativos da sua identidade. Para mim, a questão resume-se a isso, a preservar a identidade quando nada mais nos resta, quando perdemos tudo ou praticamente tudo, quando nos são retiradas casas, bens, um tecto para me proteger, uma cama para dormir descansado, paz nas ruas onde antes circulava. Se me tiram tudo, provavelmente, eu gostaria de, pelo menos, preservar aquilo que considero ser representativo da minha identidade.

Essa questão leva-me a outro problema, que é precisamente o de muitos nem sequer saberem quem são, o que os torna únicos, qual a sua essência, o que têm de especial para darem ao mundo. Quando não sabemos quem somos, podemos ser uma coisa qualquer, e quem se atreve a ser igual a si mesmo, é visto com maus olhos. Independentemente de se gostar, ou não, Joana Vasconcelos é diferente, tem um estilo, convicções, ideias. Goste-se ou não, e eu nem sou grande fã da obra da senhora, ela tem levado o nome de Portugal mais longe, tem mostrado obra, ainda que seja diferente. Na verdade, António Variações era diferente, Freddie Mercury era diferente, David Bowie era diferente, Mozart era diferente, Leonardo da Vinci era diferente, Einstein era diferente, Tesla era diferente, assim como tantos outros que tanto nos deixaram, e muitos deles eram criticados ou pouco vistos, menosprezados e ridicularizados. Quando lidamos com a diferença, a primeira reacção do ego é o ataque, e foi simplesmente isso que vi quando li muitos dos comentários contra as opções de Joana Vasconcelos.

Fomos formatados socialmente para sermos seguidores, para sermos carneirinhos num rebanho liderado por um pastor que se aproveita de nós. Então, para colmatar a incontornável necessidade de sermos qualquer coisa, criámos essa coisa da “figura pública”, supostos exemplos duma sociedade, conceito que, também ele, caiu, quando as ditas passaram a ser a malta do croquete, que vende a alma ao diabo para uns minutos de fama numa casa vigiada 24 horas por dia, com direito a emissão televisiva. Já pouco vão comprar um pacote de leite porque uma determinada senhora que aparece na televisão, supostamente, bebe esse leite, mas ainda continuamos a ver anúncios dessa natureza. Para mim, esta campanha falhou neste ponto, o ir buscar figuras públicas, ainda que de diversas áreas.

Antes de julgarmos seja quem for e seja o que for, talvez fosse melhor deixarmos para trás e curarmos alguns padrões de inveja e preconceito, tão naturais na sociedade portuguesa, tão antigos quanto o nosso país, mas tão maus que, ainda hoje, nos impedem de sermos grandes num mundo que precisa tanto do que temos para oferecer. Julgamos personalidades e individualidades, e não estou a referir-me a pessoas, mas sim a conceitos, sem sequer sabermos quem somos. Facilmente apontamos o dedo, sem sequer notarmos que, quando o fazemos, três outros dedos da nossa mão se direccionam para nós, e é isso que, a cada dia, tolda, limita e destrói a nossa tolerância, amplifica o nosso ego e não nos dignifica, apenas estupidifica.

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