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Já não há moedas de cêntimo

Apesar da idade avançada ainda não se sentia vencida. Carregava, todos os dias, molhadas de feno, de lenha e de tudo o que fosse necessário. A vida no campo não se incomoda com quem a cuida, interessa é que seja feita, a tempo e a horas. Todos os dias levantava-se cedo, tão cedo que o galo ainda não tinha cantado nem o sol se tinha espreguiçado. Muito cedo. Já os raios, tímidos e fininhos, que o sol enviava para a Terra, lhe faziam cócegas e ela tinha tudo orientado. Que idade teria? Isso que interessava?

Havia coelhos, galinhas, patos, vacas, burros e tantos outros que iam surgindo. Dos gatos tinha perdido a conta e os cães nunca a abandonavam. Eram vários, tão velhos quanto ela, mas que não se negavam ao trabalho que era pedido fazer. Primeiro eram as vacas, que estavam pesadas e inchadas, precisavam de alívio. Leite quente e fresco, uma antítese tão adequada e que poucos sabiam apreciar. Primeiro as bezerras e depois o Jaquim que vinha buscar o resto para vender de casal em casal. Isso ela já não fazia, tinha delegado e ele cumpria escrupulosamente. Depois os coelhos, que precisavam de nova erva e da cama mudada. Aquelas mãos eram sábias e produtivas e os dentolas, sempre a roer e a roer, sabiam que ela olhava por eles.

Pareciam rir, com os dentes aos pares, sempre em movimento que precisavam para desgastar. Os patos reclamavam, mas eram mais espartanos e necessitavam de menos cuidados. Sabiam comunicar e eram uns excelentes guardas. Ao lado eram as galinhas, mas essas, estoicistas, falavam sem se queixar. Qualquer coisa era o seu sustento e a sua satisfação. Eram pobres de vida e de espírito. Galinhas. Os burros já não trabalhavam como dantes, eram pré-reformados, mas ainda sabiam produzir, quando necessário. Nos dias de feira iam com ela, pacatamente carregando tudo o que aquela mulher entendia vender. Aguardavam, pachorrentamente, pelo regresso, em passo lento que também chegavam ao destino.

A comida era confeccionada todos os dias, que coisas requentadas não eram para ela. Enquanto cozinhava faziam-se outras tarefas e o tempo era aproveitado ao máximo. A casa era velha, mas tinha tudo no lugar, ela sabia onde. As peças eram tão peculiares que se diriam ter saído dum museu, mas não, ainda eram as da origem, quando ela montou a casa com o seu Jaime, aquele safado, mas isso só soube depois. Eram do tempo bom, feitas para durar, caras, mas nunca se estragavam ou se assim fosse, arranjavam-se, pois claro!

Teve sonhos, como qualquer mulher e a Dâmasa era bem bonita e galhofeira. Calhou que, num dia de romaria, os seus olhos caíssem no Jaime. Foi uma paixão de tal forma arrebatadora que, enquanto não consumaram a união não descansaram. Naquela época casava-se bem ou mal, nunca por amor. Eles foram uns inovadores e falados em todos os povoados. Onde é que já se viu um casamento assim? E não se largavam, que o corpo tremia e eles não lhe resistiam. Veio o primeiro filho, o Manel e o amor não se apagava. De seguida foi a Clementina e o Amadeu para se chegar à Isalinda. Como era delicada esta criança. Parecia um anjo caído do céu. Sorridente e brincalhona, mas sem nunca falar. O pai teve uma tristeza tal que começou a passar mais tempo na Taberna do Zé Chico do que em casa. E o trabalho era todo para ela, aquela mulher parideira que ainda amanhava a terra, cuidava dos animais e criava os filhos. Ele começou a falhar em casa. Só lá ia de quando em vez. Fazer mais filhos, que eles ainda tinham muita chama para arder.

Vieram outros e um dia a Isalinda perdeu o pio de vez. Se nunca tinha falado, o que era o desgosto do pai, espalhava alegria por todos que a conheciam. Uma manhã ficou a dormir para sempre e o pai nunca mais largou o tinto e o bagaço. Não quis outras mulheres, não, que ela era a sua para sempre, mas as suas responsabilidades desapareceram. Ela ficou com a ranchada de filhos e o Jaquim, que um dia lá apareceu. Era meio atoleimado, mas com força e bons braços para trabalhar. Nunca apareceu parente que o reclamasse e foi ficando. Quando os filhos se foram para a Alemanha, a França, o Canadá e o Luxemburgo, o Jaquim continuava à guarda da sua mãe adoptiva que tratava, carinhosamente, por sim, minha senhora dona.

As distâncias já não eram para os burros que eram mais de estimação do que de trabalho. Ela ia a pé, com aquilo que fosse preciso, de um lado para o outro, até o sol se pôr. Nunca parava e era assim que ela dizia que a morte a devia encontrar. Era analfabeta, mas não se deixava enganar. Mulher, naquela época não ia à escola, ajudava a mãe a aprendia a servir o marido. Contudo, ela sabia tudo o que a escola não ensinava e que a vida obrigava a conhecer e a usar. Sei muito bem quem é o Presidente, não pense que eu sou uma estúpida, mas de nada me serve. Ela não me vem ajudar. O que é que ele tem feito pelo campo? Hem? Diga-me lá! Nada! Matou isto tudo, não há trabalhos. Os filhos vão embora, os netos não falam a nossa língua e os bisnetos já nem voltam. No entanto, ele come aquilo que nós cultivamos, que tratamos com as nossas mãos e o nosso suor. Ele não sabe quem somos, mas sabe-lhe bem o comer, não é verdade? E o primeiro Ministro? Também sei. É só fazer uma cruz, não preciso de pôr lá nenhuma letra. Eu conheço as caras e os desenhos.

São quase como o meu Jaime, uns ordinários, que só se aproveitam de quem acredita neles. O meu Jaime já se foi, levou-o aquilo do fígado, aquela doença e que a terra lhe seja leve, mas era um malandro, ó se era. O dinheiro? Claro que sei que mudou. Tudo muda, nada fica igual, nunca mais. Já passei por tantas coisas que o dinheiro é que incomoda menos. Não custa nada a aprender. Vale é cada vez menos, não presta para nada. Olhe, como o meu Jaime, um coitado que não valia nem uma moeda de cêntimo.

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