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Gira o disco e toca o mesmo

Com quatro letrinhas apenas se escreve a palavra arte, de todas as palavras pequenas é das que mais discussões geraram. Nos finais do século XIX e início do século XX, o tema da arte foi debatido acaloradamente, até ao insulto, até à pancadaria. Centro-me nas artes plásticas e, sobretudo, na pintura – é mais fácil por vária ordem de razões.

O mundo está globalizado e, em Lisboa, posso escutar uma rádio do Alasca, ou ler um manuscrito medieval. A liberalidade do Ocidente custou a ganhar e fez-se em paralelo com a democracia.É o horror ao conhecimento, à liberdade de pensamento e ao autoritarismo que castrou, ou tentou, a arte. Grupos fanáticos e radicais islâmicos têm pavor à escola, à literacia feminina, à pluralidade de pensamento e à arte.

Daí afirmar que a arte beneficia no Ocidente da liberdade permitida pela democracia. A arte desafia. Faz-se no movimento perpétuo de tese, antítese e síntese. Ora, a liberdade democrática e a tolerância esbatem as fissuras e rupturas. Não há as bengaladas, nem os insultos do século XIX e parte do XX.Arte é conhecimento, próprio e de grupo, é pensamento. Provavelmente, pensamento antes de técnica. É aí que se alimentam as tendências contemporâneas. O conceptualismo, que é pensamento, substitui-se, ou “desvaloriza” a técnica. Não a temática, necessariamente.

O Surrealismo é mais conhecido do público, é mais espectacular e vivo. Bebeu no livro A Interpretação dos Sonhos, publicado em 1899, a inspiração. O tempo era mais vagaroso, o movimento liderado por André Breton (1896 – 1966) despontou na década de 20 do século XX.

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René Magritte – O quarto de escutar

O espectáculo de cor e formas, de que Salvador Dali (1904 – 1989 – em ruptura filosófica e política com os outros elementos acabou fora do movimento) e René Magritte (1898 – 1967) tiveram outra fonte, o Dadaísmo – designação tirada da entrada de página dum dicionário: “Da da”. A fonte de Marcel Duchamp (1887 – 1968), um urinol de vulgar cerâmica, é a maior provocação. A desconstrução da arte e os objectos artísticos “readymade” (o urinol) alimentaram os rios da Arte Conceptual, que pode ser tudo.

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Piero della Francesca – Nossa Senhora com o Menino e Santos

O conceptualismo não é recente. Um bom exemplo é um quadro de Piero della Francesca (1415 – 1492) retratando Nossa Senhora com o Menino na companhia de Santos. Sob ela pende um ovo. Aqui significa origem, algo que a transcende e ultrapassa o ventre. Ab ovo – desde o começo, diziam os latinos.

Da obra de Pablo Picasso (1881 – 1973) – percorreu tendências e movimentos até ser só ele próprio – se disse que “até uma criança de seis anos faz”. Pois, não faz. Não faz, porque a arte estava assente em conceito, filosofia, conhecimento, exploração.O que “até uma criança de seis anos faz” é a arte rupestre pintada em grutas, ou as gravações em pedra. Acontece que o Paleolítico Superior aconteceu entre 20.000 e 10.000 antes de nós. Até aí ninguém se lembrara de cuspir pigmentos sobre as mãos, criando o contorno – o objecto era a própria assinatura.

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Pintura na gruta de Pech Merle – a representação do “Eu”

Aconteceu em “simultâneo” em diferentes locais do mundo. O homem pensou para usar pigmentos e experimentou-os, criou ferramentas, “reproduziu-se” e retratou a realidade que mais lhe interessava: a caça. A arte terá nascido com o pensamento mágico.

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Gravura no Vale do Douro – ilustração do pensamento mágico

Daí, evoluiu e foi muita coisa até ser só o que é hoje, incluindo ser coisa nenhuma. Os ícones da Arte Bizantina têm carácter sagrado e Ticiano (1473? – 1576) alimentou-se com as encomendas da igreja e de vaidosos endinheirados – ele e os outros. Hoje vemos arte onde estava “publicidade”, transmissão dum pensamento, instituição – obras encomendadas, como hoje aconteceu em salas de reunião de marketeers.

No Ocidente – esquecendo uns avôs e bisavôs –, tivemos o Clássico de Grécia e de Roma, Paleo-Românico, Românico, Gótico(s), Renascença(s), Neo-Clássico, Romantismo(s) e daí para cá pazadas de correntes.

Rembrandt van Rijn – A aula de anatomia do Dr. Tulp
Rembrandt van Rijn – A aula de anatomia do Dr. Tulp

Uma professora de Matemática, com cultura de lagartixa, disse numa aula de alunos da vocação pedagógica artística:

Arte é o que se vê ali fora e está pintado no quadro.

Pobrezinha, porque até “essa” paisagem se “fez” com inúmeras abordagens, variando com a época e artistas. Acresce-se que até essa “perfeição” se pode fazer de equívocos. Do “lambidinho” pormenorizado de uns até às pinceladas livres doutros. À distância a que está colocada a pintura, o resultado é o mesmo. E traço solto não é a tal reprodução exacta do que se via da janela da sala de aula.

O retrato fiel

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Pablo Picasso – Guernica

“Essa”arte de mera reprodução exacta da realidade (da professora citada) é incompetente e muito incompleta para ilustrar o horror da guerra contemporânea. Esse terror contemporâneo só pode ser transmitido pela arte, ou abordagem do mesmo tempo. “Só” Picasso podia ter pintado a “Guernica”.

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Diego Velázquez – A rendição de Breda

Como “só”Diego Velázquez (1599 – 1660) podia ter pintado uma alegoria da capitulação da cidade de Breda. Não é um instantâneo Polaroid.“A rendição de Breda” apresenta o encontro entre Justino de Nassau, defensor da cidade, com as chaves do burgo na mão para as entregar a Ambrósio de Spínola. O holandês apresenta-se, querendo ajoelhar-se, e o vitorioso genovês segura-o, para que se não humilhe. Na tela, cabe o epílogo da história e a mentalidade da classe militar de outrora.

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Jacques-Louis David – Coroação de Napoleão

A “falta” à verdade histórica tem outro exemplo, esse mais ousado. Jacques-Louis David (1748 – 1825) pintou a coroação de Napoleão Bonaparte. Na cerimónia retratada, há pessoas que estiveram ausentes.

A arte documento foi pintada, como hoje se faz arte com fotografia. As reportagens realistas do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado são disso exemplo. Tal como as mais antigas de Robert Doisneau(1912 – 1994),ou Henri Cartier-Bresson (1908 – 2004), dois dos mais célebres foto-repórteres.

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Robert Doisneau – Le Baiser de l’hôtel de ville
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Manipulações fotográficas para propaganda de Josef Stalin
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Manipulações fotográficas para propaganda de Josef Stalin

Se David acrescentou e Doisneau encenou (está provado), Stalin, que não foi artista, deixou vasta obra. Josef Stalin, que foi mandando “retocar” fotografias, apagando camaradas que se tornaram indesejáveis – apagados também na vida. Por outro lado, acrescentou-se em fotografias, junto de Lenine, de momentos relevantes para o bolchevismo.

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Aleksandr Gerasimov – Retrato de Josef Stalin

Não deixa de ser curiosa a forma como as ditaduras comunistas lidaram com a arte. Além da óbvia censura, cingiram o trabalho artístico a banalidades laudatórias, desacertadas do contexto da época. Sendo o comunismo uma doutrina aberta e internacionalista – “Proletários de todo o Mundo uni-vos” – esse suposto abraço global traduziu-se em representações nacionalistas e propagandísticas.É o caso deste simpático “Pai dos Povos”, de Aleksandr Gerasimov (1881 – 1963).

Um documentário pode fazer-se numa abordagem jornalística, tentando a imparcialidade, ou artística, visando os valores que se quiserem. Porém, há quem tenha juntado as duas coisas sem que desrespeitasse a verdade. A fotografia «Le baiser de l’hôtel de ville» – mais que célebre e omnipresente – fez-se após Doisneau ter pedido ao jovem casal que repetissem um beijo, porque fora belo e não o tinha conseguido apanhar.

Mais subtil é a fotografia, anónima durante décadas e agora atribuída a Charles Clyde Ebbets (1905 – 1978) do almoço dos operários que construíram o Rockfeller Center (à época chamado RCA Building, embora comummente se pense tratar-se do Empire State Building). O fotógrafo não mentiu, apenas ocultou. Não estavam sentados sobre um abissal vazio, mas a pouca altura. O enquadramento genial é que nos faz acreditar no que não aconteceu, ou existiu. Tratou-se dum golpe publicitário.

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Charles Clyde Ebbets – Homens a almoçar

Há liberdades e liberdades?

Liberdade não é libertinagem, nem “à vontade” é “à vontadinha”. Porém, como nos regimes democráticos se conseguem esses pressupostos? Não se conseguem. Só através da censura, o que contradiz os princípios dos regimes ocidentais.

Um caso paradigmático é o do Charlie Hebdo. Pondo de parte o horror dos atentados terroristas, que trabalho se fazia nesse periódico francês? Parodiava-se com tudo. Na verdade, muito do que dali saiu era, no mínimo, de gosto duvidoso. Houve quem se atravessasse a condenar, porque tem de haver respeito por alguns temas… Tem? Tem mesmo? Quanto a mim não tem. Não estou a querer justificar o mau-gosto persistente do Charlie Hebdo, estou a realçar o primado da liberdade.

A arte tem de ser explicada? Talvez, talvez. Talvez o conceito. O “conceito” permite o bom e de mau, o original, a boleia e “plágio” e o gozo. Haja seriedade, porque o Rei pode ir nu. A liberdade cria “monstros”, ou equívocos, donde brota o ridículo. Dois parágrafos, cada um com seu exemplo.

Numa exposição, um grupinho de jovens pensadores de arte discorria acerca duma instalação de pneus. O espaço todo estava pejado de obras, todas bem identificadas. Porém, aquela criação densa não constava. Um foi perguntar e trouxe como resposta que o monte de pneus era mesmo um monte de pneus.

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Pintura infantil exposta como obra de arte contemporânea

Em 2007, muitos peritos, coleccionadores, galeristas e apreciadores foram fintados na ARCO – uma importante feira artística europeia e realizada em Madrid. Uma jornalista pediu a um grupo de crianças que pintassem uma tela. Depois conseguiu introduzi-la na feira e pendurá-la. Como estava creditada para trabalhar como jornalista dentro do recinto da mostra, a jornalista foi pedindo opiniões e registou elogios e pensamentos profundos.

O humor refinado na arte tem séculos. Ícaro é uma das figuras da mitologia da Grécia Clássica. Seu pai, Dédalo, construiu-lhe umas asas para que voasse e advertiu-o que, por a estrutura estar unida com cera de abelha, não voasse demasiado alto, perto do Sol, para que não se escangalhasse o engenho. Ícaro desobedeceu e caiu no Mar Egeu.

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Pieter Bruegel, o Velho – A queda de Ícaro

Conta-se a lenda – falsa, ou verdadeira tanto faz – que Pieter Bruegel, o Velho (1525? – 1569), estava a pintar para o seu cliente e deu-se a liberdade para escolher temática. Porém, o encomendador desejava uma estória clássica – a de Ícaro.Devem ter ocorrido discussões entre o pagador e o importante artista. Como em última análise o cliente tem sempre razão, ou deve o vendedor seguir o desejo e albardar o burro à vontade do freguês, o artista satisfez-lhe o desejo. A obra ficou como o mestre queria, mas lá pôs Ícaro… caindo na água, vendo-se apenas as perninhas ainda por mergulhar.

A arte é técnica? É imaginação? É novidade? É ruptura? É narrativa? É conceito? É reprodução da realidade? É “fica bem na sala, porque combina com os sofás”? É gosto/não gosto? É beleza/fealdade? É assinatura?

Muitos coleccionadores são ajuntadores de “coisas”, outros são investidores (cínicos à moda de Dickens) que compram pela assinatura, ou raridade da obra e fecham as obras no escuro de cofres blindados dos bancos.

A assinatura é um aspecto curioso, porque é o que, mais das vezes, valida o trabalho. Muitas assinaturas traduzem-se em preço mais baixo, mas, se o mestre pintou pouco, a sua caligrafia torna caras as suas obras.A assinatura vale tanto que uma celebridade, que pode ser artista doutro género, faz arte e é tido em conta apenas por ser quem é. É aí que hipoteticamente pode entrar: “Isso até o meu filho de seis anos sabe fazer”.Sim ou não, talvez ou também?

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John Lennon – Rolls Royce Phantom V

Se John Lennon (1940 – 1980) não fosse um músico célebre e vedeta mundial, o que se diria da sua pintura sobre chapa de automóvel? A música deu-lhe sustento para comprar um Rolls Royce Phanton V, no qual interveio artisticamente.

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Kevin Charles – Rolls Royce Silver Shadow

O belo e o feio, o piroso, ou o reflectido e o produzido conscientemente piroso, são a mesma coisa? Kevin Charles (1928 – 2006) também trabalhou sobre uma “tela” de Rolls Royce (Silver Shadow) e pintou o que me lembra uma camisa havaiana.

Pintar a chapa de Rolls Royce parece-me ser uma fixação dispendiosa e divertida. O ex-craque do futebol Eric Cantona doou para caridade a verba obtida com a venda do Rolls Royce Corniche grafitado por JonOne.

JonOne – Rolls Royce Corniche
JonOne – Rolls Royce Corniche

Chegado aqui há que estabelecer um dogma…

Complete a frase:

– A arte é ………………………………………………………………………………………………………………………………

Para mim a arte é como a redacção da vaca.: A vaca dá-nos o leite, a carne, a pele para o têxtil… Juro! É que o meu pai é artista plástico e (com a minha mãe) alimentou-me com pincéis, trinchas, tinta de óleo, tinta de aguarela, petróleo, diluente, trapos, tento, cavalete, estirador, telas, folhas de cobre, tábuas de madeira, caixilhos, molduras…

Imagem em Destaque: Rembrandt van Rijn – Guilda dos produtores de lanifícios

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