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Fotografou as Palavras

À noite, deitada num colchão duro a olhar para o tecto, não conseguia perceber se estava a ouvir tiros ao longe ou se eram os seus ouvidos, cansados e doridos, a replicar os sons diários que começavam a tornar-se familiares. Sentiu um nó no estômago – talvez se tivesse enganado. Talvez o jornalismo de guerra não fosse vida. Que vida seria, habituar-se à guerra? Pela primeira vez, deixou-se perceber completamente drenada. Completamente trágica. Fechou os olhos por momentos e perguntou-se como seria voltar para casa.

Lá fora, o escuro. Não havia luz para que não houvesse pontaria. Mas a lua era eterna. Levantou-se e foi até à janela do quarto fumar um cigarro. Só fumava à noite, antes de dormir, e aquele era o último cigarro do maço. Talvez fosse um sinal, calculou. A mente batalhava entre a desistência do “Tenho de ir para casa” e o orgulho do “Tenho de mostrar a realidade”. Acendeu o cigarro e sentou-se no chão frio. Estava agradecida pelo fresco. Fechou os olhos e deu duas passas seguidas. Deixou o fumo passear na garganta e depois sair devagar como se fosse uma aparição, como se estivesse a permitir a fuga da própria alma. Abriu os olhos para ver o fumo branco na noite. Era irreal.

Ouviu um ruído. Tapou, instintivamente, a luz do cigarro. Nas sombras, pareceu-lhe que alguém se tentava manter anónimo. Saltou até à cómoda para ir buscar a máquina fotográfica e voltou, tão silenciosamente como pôde. Perdeu aquele vulto sombrio. Procurou-o na noite. Teve um medo ridículo que ouvissem a sua respiração ofegante, nervosa, e agora o nó no estômago era diferente – tinha-se desatado e permitido que mariposas voassem. Mariposas da noite, como ela. Nunca borboletas, que lugar-comum!

Outra vez o vulto. Não soube perceber o que era – era escuridão contra escuridão, cinzento contra cinzento, mas algo se mexia. Ligou a máquina fotográfica e espreitou o escuro através da lente. Disparou quando lhe parecia ver algo, provavelmente só impressões. Disparou várias vezes, sempre a tentar seguir aquele vulto. Disparou até quando o vulto se mostrou na noite, com uma bomba presa ao peito, e gritou palavras que ela não compreendeu mas que a arrepiaram com uma suspeita.

Um clarão e caiu para trás.

Sentiu os pedaços de vidro enterrados na pele e perguntou-se se estaria viva. Se sentia, estava viva. Se pensava, estava viva. Sentou-se no chão, longe da janela, e chorou. Não chorou só por ela, pela dor e por todos os perigos que sempre soube que corria. Não; chorou por todos os outros, os inocentes que não podiam fazer nada. Chorou pela falta de respeito de atacar uma zona residencial à noite, quando as pessoas encostavam a cabeça à almofada e agradeciam a Alá mais um dia de vida. Depois, ignorando os seus colegas que partilhavam a pensão, ignorando os vidros enterrados na sua pele como lápides, abraçou a sua mente jornalística e decidiu ver as fotografias. Olhou. E viu. E voltou a olhar, e a ver. E não compreendeu.

Nas fotografias, estavam palavras.

Não conseguiu fotografar sombras, nem noite, nem vultos. Nem clarões. Nada. Por mais que procurasse, não tinha conseguido fotografar nada além de palavras. À volta das sombras, palavras que ela compreendia serem ordens, orações, pedidos. Alguns risos. Emocionou-se com a capacidade que o ser humano tinha de alegria, mesmo perante a morte. Identificou medos e questões e segredos. Loucuras. Castigos. Arrependimentos. E ao observar as palavras, as suas cores e os seus tons, quase que conseguia distinguir cada família à qual pertenciam.

Não conseguia deixar de passar para a frente e para trás aquelas fotografias irreais e mágicas. Contra si própria, deixou-se descansar na incompreensão. Só olhou. Só observou. Só decorou cada fotografia, cada pergunta, cada prece. Decorou cada sombra e cada canto na noite, cada palavra que corria por aquela rua inocente que tinha acabado de ficar encardida. Encardida de medo, e de loucura, e de tristeza, e de morte.

Aproximou-se da janela. Não ouviu nada. Não ouviu os choros das pessoas que traziam os seus mortos ao colo, desesperadas e confusas, ou sangue nas camisolas coloridas, ou partes do corpo enroladas em panos brancos. Uma maré de gente tinha chegado, uma maré das sobras que eram agora – sem família, sem amigos, sem descanso. Fantasmas deles próprios, pedaços perdidos. Um pesadelo gigante que era agora realidade. A maré dos sobreviventes que desejavam não o ser. Voltou a apontar a máquina, a olhar através de olhos embaciados de lágrimas, e disparou. Disparou durante muito tempo, até ficar exausta de dor e de desolação. Não ouviu, mas com cada fotografia que tirou à desgraça daquele povo, leu todas as palavras que corriam da sua alma e soube que tinha ficado surda.

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