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Fala-me do teu prato preferido e dir-te-ei quem és

Eu nem sou grande fã de concursos musicais, mas confesso que comecei a pescar alguma coisa desse grande movimento de fandom que os ditos festivais suscitam, desde que passei a viver com uma pessoa que consegue cantar o refrão das canções, se lhe dermos ao calhas um ano e um país. Sim, eles existem. Enfim, acabei a ouvir “O Problema é que eu Adoro Bolos”, pois bem, não adoramos todos? Isso levou-me a uma reflexão: o que adoramos comer e porque temos coisas “preferidas” no que toca a dar ao dente? O que se segue é uma passeata pelos domínios dos sabores e das identidades, ora se faz favor sirvam-se.

“Isto é capaz de te parecer um pouco estranho…” – dizia ela, enquanto apontava para o item no menu – “mas eu gosto muito, é a minha comida preferida mesmo”.

“Ok, eu também gosto de Natto, podes pedir.”

“A sério?! Gostas de Natto?! Uau, mesmo entre os japoneses não há muita gente que goste de Natto!”

A excitação da Yuina vinha do facto de poder partilhar a comida preferida dela com outra pessoa, um sentimento com o qual todos nós nos podemos relacionar facilmente, mesmo que não nos consigamos relacionar lá muito bem com natto. Contudo, ao responder-lhe que sim, eu não estava só a agradar-lhe. Realmente não tinha (e não tenho ainda hoje) nenhum problema com a nhanhice fermentada de soja que os ocidentais residentes no Japão geralmente apelidam de “uma coisa tipo queijo podre”. Um “acquired taste” talvez, sem dúvida um património gastronómico invulgar, mas os benefícios de saúde convenceram-me e as texturas diversas nunca me assustaram.

Naquele dia, pedimos a dose de Natto Maki para partilhar e outras coisas também, tendo sido um almoço muito divertido e com muita conversa pelo meio. Foi uma entre muitas experiências que me vieram à memória, quando me dediquei a pensar sobre o que é “a comida preferida” de cada um e o que isso significa. A Yuina cresceu em Shizuoka e estava longe de casa, porque frequentava uma universidade em Quioto. O Natto lembrava-lhe a sua região, era-lhe familiar, e, ao trazer benefícios para a saúde – nomeadamente o reforço do sistema imunitário e o controlo dos níveis de açúcar no sangue -, ajudava-a a manter a dieta e a energia, mesmo estando a viver sozinha pela primeira vez e a trabalhar até à exaustão.

“A comida preferida” é muito frequentemente algo que representa as raízes de uma pessoa, a sua pátria emocional ou a terra natal dos seus antepassados. Quer seja um sabor real que se adquiriu desde a infância ou algo que se assimilou como representativo da identidade conquistada no início da vida adulta, esse “prato” (não tem de ser num prato) é sempre muito mais do que comida.

George Orwell, por exemplo, jurava que a melhor coisa na gastronomia britânica era o Pudim de Ameixa, que já agora não contém ameixas, mas tem muitos frutos secos e álcool, o que é sempre bom para arrebitar o espirito. É um pudim associado ao Natal, um tanto ou quanto dispendioso, um doce de festa, portanto. No entanto, no contexto de quem era Orwell, era mais do que isso, de certo modo resumia “o carácter nacional britânico”. O escritor, apelidado de nacionalista por uns e de patriótico socialista por outros, foi muitas vezes classificado como “paradoxal”, mas não há nada de paradoxal no Pudim de Ameixas: é bom para quase toda a gente. O que é que uma pessoa pode deduzir do seu apego à sobremesa? Talvez que é a versão palatal das suas intervenções acerca de como a (nova) sociedade britânica se poderia fundar nas tradições culturais do povo como estratégia contra o totalitarismo… Ou se calhar isso já é ler demais no que é pura gula. Será?

Jean-Paul Sartre, por outro lado, não jurava por nenhuma delícia francesa, apesar de a França ter a gastronomia mais famosa do mundo. O que lhe ocupava o pensamento era a humilde Halva. Nas cartas que escreve a Simone De Beauvoir depois de ter sido mandado para a guerra, implora-lhe que lhe mande barras de Halva por correio. Ficou quase desesperado, quando um dos pacotes que chegou não continha Halva, mas eventualmente chegou um segundo pacote e com tanta carga preciosa que até a partilhou com os soldados que estavam com ele. A Halva é um doce típico do norte de África e Médio Oriente, existindo em abundância até à Índia (a receita mais antiga de Halva consta num livro árabe do século XIII e supõe-se que as receitas se espalharam por todo o mundo muçulmano). Embora seja impossível contar quantas versões de Halva existem, a versão preferida de Sartre seria aquela na qual predominam as sementes de sésamo e os frutos secos, embora todos os tipos de Halva tenham também grande quantidade de gordura animal.

Sartre nasceu em 1905, em Paris, passou a infância na casa dos avós nos arredores da capital (depois da morte do pai, Jean-Paul e a sua mãe foram viver com os avós maternos) e, aos 12 anos, devido ao segundo casamento da mãe, foi viver para La Rochelle, na costa ocidental francesa, uma terra banhada pelo Atlântico. Em 1939, foi recrutado para a Guerra, pelo exército francês. Paralelamente à sua produção literária e a todos os ensaios e demais escritos que nos legou, Sartre é conhecido por ser contra o domínio francês sobre a Argélia. Também há quem considere que a sua posição contra os colonos franceses na Argélia é cruel e que demostra desprezo por um grupo de seres humanos particular, já que se baseava na ideia de que os europeus tinham se ser derrotados e expulsos da Argélia (que de 1954 a 1962 teve uma guerra civil).

De que modo é que a vida deste escritor com uma acutilante visão política se relaciona com os seus desejos alimentares mediterrâneos? E porquê a paixão por Halva? A Argélia não era a pátria de Sartre, a sua educação precoce foi feita no seio da família materna, com uma mãe nascida na Alsácia e um avô alemão que lhe ensinou matemática e pensamento científico. A Halva argelina, com os seus toques de amêndoa torrada, era um prazer adquirido, não um eco de perceção de pertença. Ou talvez fosse uma pertença diferente, a que lhe nasceu pelo intelecto e se sublimava agora nas papilas gustativas.

Este artigo foi redigido de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
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