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É tarde, passaram os anos

Penso-te em contraluz: lá fora o azulão do anoitecer e tu sentado, nu, a inventar o que contar à máquina de escrever. É mentira, claro; nunca tivemos máquina de escrever e tu nunca tiveste interesse em fabricar palavras, mas dá-me por recordar-te assim, entre um sonho e o fumo do teu cigarro. Na realidade, se te lembrar com força, sou capaz de te ver deitado, a luz amarela do candeeiro lá fora a ser perfeita na curva do teu pescoço, nas tuas costas nuas. O fumo é branco no escuro e negro à luz, caprichoso, mudando de querer, de forma, de significado. Estamos num quarto de vultos onde só tu és protagonista. Pego na minha máquina fotográfica e roubo-te a sombra, roubo-te à sombra.

O som da polaroid.

Uma fotografia a branco e preto, na escuridão de um quarto de cal. Que curioso: mal se vê o que quer que seja, parece um quarto escuro, um pesadelo, um prólogo de uma história de assombrações. Mas eu sei-te ali, ali no meio, ao pé da lâmina branca que deve ser um pedaço de luz que ilumina o lençol. Estás mesmo ali, no centro, invisível para quem não saiba ver. Quase consigo adivinhar o sorriso de última hora que fizeste ao olhar para mim. Fomos sempre assim, não foi? Até nos inventávamos nas impossibilidades. Éramos tão jovens que quando abríamos os olhos tudo estava certo no mundo, perfeito entre nós.

Há quanto tempo não acordamos com a sensação de que está tudo como deve estar?

É tarde, passaram as horas e passaram os anos. A noite abre-se e traz o silêncio. A tua respiração. A minha mão no teu peito sobe e desce, numa dança contemporânea que imita… o quê, uma montanha-russa preguiçosa, sensível, num filme em câmara lenta? Sobe e desce, devagar quando dormes. Sobe e desce, rápido quando te ris, quando finges dormir, quando falamos de futuros quiméricos ou quando discutimos a insensatez dos pássaros que escolhem o chão quando poderiam ser donos do céu. Suaves, os teus dedos percorrem os meus, da ponta até ao pulso e vice-versa, distraidamente, absortos dos arrepios que me causam. Tu explicas-me a ciência, a prática, os porquês. Eu conto-te a magia, a filosofia, os porque nãos. O tempo parece esticar-se, desejoso de parar, somos tão mais do que um acaso, sempre o fomos, e de repente a noite passa inteira num instante, como se o tempo fosse um elástico que se soltou e trouxe luz.

Quando cruzamos o olhar, entristecemos ao perceber que o tempo é tão diferente para cada um de nós.

É tarde, sim, é tarde. Nas horas e na vida.

Destapas-te das memórias e levantas-te. As recordações ficam no lençol, caóticas, desgrenhadas. Prometem-te a noite, é o único que têm. Eu observo-te em contraluz, penso na sombra que te roubei e que ficou nessa fotografia perdida, quando éramos jovens, e como estamos tão longe daquilo que esperávamos. Agora, sem imaginar, sem sonhar, observo-te: a tua pele envelhecida, o teu cabelo a ficar cinza, o peso dos anos que caiu de repente nos teus movimentos. Sei-te, vou saber-te sempre. Podes encaixotar o meu cheiro – as roupas, os livros, os vinis; tudo aquilo que parecia fazer-me ser eu. E que afinal não era. E que, no fim, não foi. Podes encaixotar tudo. Deixa-me repetir: sei-te, vou saber-te sempre. Deixa-me corrigir: vai, que eu ficarei no lençol, nas nossas lembranças caóticas, desgrenhadas, a prometer-te a noite, porque é o único que tenho, é o único que nos resta.

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