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Discriminação

“Olha lá,” bateu a porta ao entrar, e pousou a mala “tu tens vergonha de ser preta?”

Abri muito os olhos, surpreendida. Ela tinha cá uma maneira de ser subtil e de fugir ao assunto…

A minha primeira reacção foi dizer “não sou preta, sou mulata”. Acertar o pensamento, pôr os pontos nos is, esclarecer. Mas só disse “Não!” com um tom entre o envergonhado e o ofendido.

Ela suspirou e sentou-se ao meu lado. Os olhos cor de mel brilhavam, mostravam uma certa tristeza, como se a minha vergonha a decepcionasse. E provavelmente decepcionava, sim. Tinha a pele muito branca, sardas e cabelos ruivos. Olhei para a minha pele, da cor de um galão escuro, e comparei-as. Ela nem parecia ser minha mãe.

“A tua professora contou-me que te pediu um trabalho sobre as tuas origens e que disseste que o teu pai era cubano, morava em Cuba, que és latina” suspirou. “O que se passou? Tu sabes perfeitamente que ele era nigeriano!”

Olhei para os meus pés. Sabia, claro que sabia. Mas o que conhecia melhor do que o meu pai – que tinha morrido antes de eu nascer – era a crueldade das crianças, que só conheciam a minha mãe e me massacravam com a ideia de ser adoptada. Eu não acreditava, mas tinha medo que fosse verdade. Nunca lhe contei, não a queria deixar triste; mas todos os dias procurava o álbum de fotos de quando eu era bebé, de quando a minha mãe namorava o meu pai, de quando estava grávida. Grávida de mim, repetia com lágrimas nos olhos. Eu tinha sido sempre filha dela e ela tinha sempre sido minha mãe. Eu tinha estado dentro dela, era parte dela. Tocava nas fotos e chorava.

“Não tens de sentir vergonha do que és ou de quem és. O que se passou? Queres falar?”

“Nada, se passou. Ou tudo. Sei lá. O que eu sei” olhei-a nos olhos “é que a intolerância tem muita força e consegue moer-nos, ou até matar-nos. Consegue negar-nos. Eu não tenho vergonha, tenho é medo e dúvidas. Sinto que é mais fácil contornar a verdade se quiser sobreviver neste mundo que odeia pessoas como eu, do que pentear-me com uma afro e enfrentar sozinha a discriminação. Mas sei o que sou. Não tenho é a certeza se gosto.”

Ela surpreendeu-se com as minhas palavras. Desiludiu-se? Não, assustou-se.

Talvez, na sua mente, a filha de quinze anos não percebesse ainda o mundo, não sofresse. Talvez ela, com o seu cabelo ruivo e a sua pele cor neve, não conhecesse o mundo que eu conhecia. Éramos família, tínhamos o laço mais forte que pode existir, mas éramos de mundos diferentes.

Senti-me sozinha, e disse baixinho “tu és completamente branca, não sabes como me sinto.”

Por momentos, pensei que ela não tivesse ouvido. Mas ela tirou a camisola, e virou-se, mostrou-me as costas: “toca, se quiseres.”

Eu não lhe conhecia as costas, por mais estranho que parecesse. Que filha é que nunca viu as costas da mãe? Mas não conhecia, conheci pela primeira vez nesse dia.

As costas da minha mãe, com uma cicatriz velha de pele brilhante e nova que marcava uma cruz suástica. Toquei, e arrepiei-me. Nas costas, na pele da minha mãe, estava a marca do ódio que eu temia, da discriminação que eu tinha medo de sentir. Gravada na sua pele, estava a minha razão de me esconder, mas também o motivo do porquê não o devia fazer.

“O teu pai não sobreviveu ao ataque, não teve a sorte que eu tive” disse, sem mais explicações.

Sempre tinha pensado que ele tinha morrido num acidente de automóvel. Alguém me teria mentido, ou teria a minha imaginação preenchido essa lacuna da minha história?

“Não podes ter vergonha. Eles não merecem a tua vergonha, nem o teu medo. O mundo merece a tua pessoa, e o mundo evolui…”

“Mas a discriminação enraíza-se” interrompi.

“As pessoas evoluem” continuou ela “e só te interessam aquelas que gostam de ti. As outras interessam a outras pessoas, tu não tens nada a ver com elas. Nem te tens de lembrar que existem. Eu fiquei marcada por essas, essas que não interessam, mas nem isto me tirou os bons momentos que passei com o teu pai, preto quase carvão” sorriu da sua piada “nem me fariam apaixonar por um branco só por segurança ou medo. E aposto que ele sente o mesmo, ou sentiria se estivesse connosco.”

Abraçou-me, e eu abracei-a de volta. Sem querer, toquei-lhe na marca, na cicatriz. Mas abri as minhas mãos e tapei-as, como se o meu afecto chegasse para proteger a minha mãe. Na desgraça dela senti alento, senti-me acompanhada, e penso que ela sabia. Na desgraça dela, tive ainda mais medo e vontade de fugir. Mas também, na desgraça dela, consegui, com o arrastar do tempo, encontrar-me.

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