Diversos são os motivos que levam uma obra a deixar a sua marca. O modo como nos identificamos com o que ela nos oferece parece-me aquele capaz de deixar uma impressão mais profunda.
A leitura de O Deserto dos Tártaros foi-me contagiando sorrateiramente à medida que eu esperava que algo acontecesse e esse algo… não vinha. Na altura, sem perceber porquê, não conseguia deixar o livro, na esperança de que o jovem aspirante Giovanni Drogo pudesse ver concretizadas as suas aspirações.
Estava em 2015 e lembro-me que foi no Festival de Paredes de Coura que o livro me agarrou (há uma fotografia perdida na internet onde estou sentado na relva, com o David e a Margarida a meu lado, a ler o livro enquanto esperávamos pelo inicio dos concertos).
Na história, um jovem militar é destacado para um forte numa montanha na orla de um deserto onde a guarnição espera a invasão dos Tártaros. O tempo vai passando e ele vai adiando a saída do quartel, ancorado na crença de que algo grandioso – a invasão – acontecerá em breve. O tempo vai passando… e a vida vai passando… e os Tártaros não passam… e a vida vai-lhe passando… ao lado…
A sinopse não aguça o apetite de quem não leu o livro mas ela contém a mais fiel descrição do que ele trata se nos cingirmos à acção. No entanto, poucas são as obras que se fecham sobre os acontecimentos que relatam: há a prodigiosa escrita de Dino Buzzati que possui o mérito de esconder a sua mestria e há tudo o que vai para lá da acção… a mesma acção que não acontece. É também por isso que as palavras e a construção com que este “nada acontece” é preenchido só podem formar uma obra genial.
Ao longo dos meses seguintes, de cada vez que via o livro na estante do quarto lembrava-me do sentimento que me acompanhou na leitura, e destapava mais um pouco da razão pela qual ele me marcou tanto: reflecte o eterno adiamento de projectos na esperança de que, na imutabilidade, algo de grandioso me atinja sem que eu tome parte activa na luta pela sua concretização. É nesta familiarização que reside o principal motivo pelo qual gostei tanto d’O Deserto dos Tártaros. Contudo, sendo uma das obras-primas do séc. XX, não terá sido apenas pelo que o livro me disse a mim, pessoalmente, mas também pelo valor intrínseco da obra. Ainda assim, quando nos revemos, apropriamo-nos de algo que quem não se identifica não vê e isso não se explica, por mais palavras que eu gaste: sente-se.
O silêncio que me acompanhou durante a leitura formou parte da impressão que em mim ficou gravada. Porque O Deserto dos Tártaros conhece-se numa leitura silenciosa. O deserto é silêncio. O deserto que Drogo vê diariamente à sua frente a acenar com a miragem dos Tártaros é o que resta da sua vida, uma vida continuamente adiada… o deserto… onde nada acontece se não fizer acontecer. Por isso escrevi “na esperança de que (…) pudesse ver concretizadas as suas aspirações.” e não “na esperança de que (…) concretizasse as suas aspirações.”.