Conheces já o grande segredo? Diz-me ao ouvido, prometo que não conto.
Fui algumas vezes ao cemitério depois da morte do meu pai. Como em nenhuma delas o encontrei, desisti. Entretanto, e porque das alturas tardam em chegar respostas, passei a aceitar a linha do horizonte como regaço para as minhas inquietações, e serenei. Nunca me adaptei ao movimento contranatura de ajoelhar sobre o solo e simultaneamente apontar o rosto ao além, esperando a revelação. Continuo, no entanto, no desassossego das perguntas.
Morrer é adormecer ou acordar? É partir, chegar ou permanente travessia?
Será morrer um não saber ainda mais profundo? Continua a doer a ferida?
É a morte uma nova infância que se abre? O que começa quando tudo acaba?
Os cemitérios são lugares muitos colados ao solo, de vistas estreitas e onde nada acontece. Julgo que os mortos não amam a terra, não esse pedaço de chão que parecemos querer impor-lhes. Tenho para mim que são como pássaros experimentando as asas pela primeira vez e, porque o voo se quer alto e leve, a extensa bagagem das memórias e dos momentos tem de ficar para trás.
Cabe a quem os amou e fez parte desse arsenal de momentos e memórias carregar a sua parte da bagagem, cada um terá de levar o seu pedaço de morto às costas. Um morto pode ter vários lombos a auxiliá-lo na travessia contra o esquecimento, mas ele pesa de maneira diferente em cada dorso. Tenho um morto, um único morto que me ocupa as costas inteiras.
Diz-me ao ouvido, prometo que não conto.
Conheci vários carregadores de mortos antes de me tornar um deles. Lembro Maria. Ela, a quem só a maternidade deu razão para uma vida até então desprovida de sentido. Um único filho, de olhos rasgados como os do pai que não conheceu. Tinham-se um ao outro e bastavam-se. Depois veio o grande golpe do fim, cruel porque inesperado e prematuro, o horror do caixão aberto, a tragédia da sepultura, o negrume das roupas e dos dias.
Era um adolescente cheio de infância nos olhos e neles a sensação de que mudaria o mundo, hoje substituída pela certeza de que teria efectivamente mudado o mundo, tivesse tido tempo. Maria, colocada entre a opção única de aceitar ou aceitar, recusou, como recusam todas as mães de coração em carne viva. Guardou tudo o que pode em gavetas e estantes, e sobre a colcha imaculadamente branca repousam emoldurados uns olhos rasgados de menino. O que não coube nos arrumos leva às costas, razão pela qual anda vergada, ostentando um cansaço permanente de fim.
Quis várias vezes ir para junto do seu menino, mas o medo do desencontro fê-la recuar sempre. Com o tempo aprendeu a administrar a tristeza, pequenas doses diárias bem distribuídas pelas horas e a dor entranhada na carne já não arde, só dói. Pediu ajuda à religião à qual passou a dedicar os dias, desdobrando-se entre visitar o filho debaixo da terra e orar a Deus pela sua alma que, intimamente, duvida que esteja naquele pedaço de chão. Nos entretantos, acaricia-lhe o rosto adolescente da moldura e segreda-lhe palavras de mãe que só ele entenderá.
Prometo que não conto.
No cemitério, o corpo do seu menino escapou por escassos anos à área reservada aos mais pequeninos, essa onde ursinhos de peluche coabitam com lápides de textos mais extensos, em que ainda assim não cabe o espanto da tragédia. É também ali onde se multiplicam os mortos, não debaixo da terra, mas pousados nas costas dos que os choram, ignorando o facto de que sairão sempre com eles no dorso.