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Carol

Carol

Quando estreia um romance rotulado pelo tema homossexualidade, muitos são aqueles que um quanto desacreditados no poder da narração, caem numa leitura mais genérica, sem olhar para a profundidade e singularidade do modo como a respectiva história é contada. Claro que o cinema sempre usou personagens e ‘pesadas’ temáticas, mas mais do que a história em si, qualquer filme é sempre analisado pela sua estrutura narrativa. Esta pequena chamada de atenção, sobretudo para os cépticos, estabelece uma linha de apresentação a Carol, realizado por Todd Haynes, facilmente um dos melhores filmes de 2015, que só agora chega às salas portuguesas – a primeira projecção foi no Festival de Cannes do ano passado, onde recebeu uma eufórica ovação de 10 minutos.

Baseado no romance de Patricia Highsmith, Carol ou O Preço do Sal, publicado em 1952, sob o pseudónimo Claire Morgan, uma vez que o conteúdo era considerado proibido pela sociedade da época, Carol aborda a relação que nasce entre duas mulheres, uma pobre e uma rica, uma jovem e outra mais velha, uma com sonhos e emancipada, outra que quer deixar de estar dependente do seu marido, daí o seu conturbado processo de divórcio. São elas, Therese Belivet (Rooney Mara) e Carol Aird (Cate Blanchett), nomes que jamais soarão com tanto glamour, se não forem as principais actrizes a pronunciá-los.

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À partida, ao público virão à memória outros exemplos com a mesma base,  O Segredo de Brokeback Mountain e A Vida de Ádele, mas como se sabe, têm um registo próprio, dificultando uma imediata comparação. Em Carol, há toda uma subtileza, um glamour e classicismo que não encontramos noutros romances, ou melhor, que não encontramos noutros filmes e facto um quanto pertinente é que não apressa a cena do sexo, revelando inteligentemente outros episódios que se tornarão imprescindíveis para a sétima arte.

Logo nos momentos iniciais um aglomerado de gente anónima, em ritmo frenético, sai da estação de comboios. Cada indivíduo segue a sua vida, mas a câmara começa por destacar alguém de entre a multidão. Esse alguém é um homem e porque o filme quer retratar o ambiente machista que se sentia, é percebível a escolha – através de um homem são introduzidas as mulheres protagonistas. Homens que são ainda figuras estereotipadas, tão características da época, nomeadamente Harge Aird (Kyle Chandler) e o ‘bruto’ Richard Semco (Jake Lacy). Em seguida, um flashback, que aproveita o movimento do comboio circular do comboio, afinal todo o início tem um fim e todo o fim tem um início. Situação idêntica com a presença constante do automóvel, que realça o seu intenso fabrico nos anos pós-segunda guerra mundial e que parece expor uma sociedade envidraçada, assente numa ‘ordem’ e preceitos que deverão ser respeitados, e por servir de paralelismo à viagem até ao íntimo da dupla, que se descobre mutuamente aquando da road-trip pela América. Quase em fuga, para viverem livremente o seu amor, aquelas almas solitárias encontram-se, diante dos nossos olhos sempre críticos aos instantes da relação.

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Opostas, mas complementares, são mesmo Cate Blanchett e Rooney Mara que se destacam. A interpretação primorosa de Blanchett faz-nos voar no tempo e ganha maior importância do que aquela dada no livro. É provavelmente a sua segunda melhor interpretação (ainda não esquecemos a sua Blue Jasmine) e a sua situação é a mais complicada, sobretudo pela existência de uma filha que oprime indiretamente a possibilidade de amar. Com a Therese de Mara descobrimos uma certa instabilidade emocional, alguém à “procura de respostas” e que satisfaz o seu desejo na fotografia – na obra de Highsmith, Therese é aprendiza de cenógrafa -, arte que tem também esse lado de (re)descoberta.

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Certamente poucos notarão a importância do momento em que vemos uma sequência de O Crepúsculo dos Deuses, com Norma Desmond (Gloria Swanson), a tocar nos ombros de Joe Gills (William Holden), este que é arrastado pelo poder feminino. Para muitos, pode ser mais um filme a preto e branco, mas entra em Carol para potencializar o poder do toque, do gesto melodramático, pontualmente repetido, que vai além do desejo e reafirma as relações humanas. Outro detalhe é de como o tempo se torna instante, como a sequência do túnel, na mesma maneira como quando estamos apaixonados, em sincronia com a vasta e riquíssima banda-sonora de Carter Burwell.

Todd Haynes é mestre. Depois de Longe do Paraíso, e ainda melhor, depois da mini-série Mildred Pierce, ambos ambientados nos anos 50, Haynes eleva o melodrama de Hollywood ao seu expoente máximo, recordando obras de Douglas Sirk e até de outros que de uma certa excessividade, reflectida nos sarcasmos de Carol. O mesmo que se o diga da fotografia de Edward Lachman, metódica e tradicional, nomeada ao Óscar, perfazendo uma das seis nomeações que o filme tem – falhou a nomeação a melhor filme e melhor realizador, mas isso é outra conversa.

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Uma forma final para descrever a grandiosidade de Carol seria com uma expressão do livro, quando Carol pergunta a Therese o que é um clássico e esta responde “um clássico é algo como uma situação humana básica”. Se tivermos em conta as análises do filósofo Aldous Huxley sobre o que é uma situação humana, descobriríamos que se trata de pensar a relação do Homem com as ordens estabelecidas, ao encontro de um ‘eu’ enclausurado do mundo, da mesma forma como Carol, Therese e todas as outras mulheres que na época sentiam esse sentimento, amor (atente à canção “No Other Love”, de Jo Stafford). Em breve pensaremos em Carol, como um filme sobre o legado de Hollywood, mais do que um mero romance lésbico.

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