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Béla Tarr: O Cinema Como Experiência de Vida

Quando o filme O Cavalo de Turim (Urso de Prata no Festival de Berlim 2011), do realizador Béla Tarr, foi exibido no Brasil, a produtora do cineasta, Juliette Lepoutre, avisou a plateia: “O que vocês vão ver não é um filme, mas uma experiência de vida”. E assim é. Todo o cinema de Tarr é uma “experiência de vida” em forma de testamento monumental, em forma de linguagem estética que ultrapassa a noção vulgar de “cinema”. O cinema deste cineasta único é já uma outra força expressiva que extravasa os cânones ortodoxos da 7ª Arte, que desafia e desconcerta até o espectador mais calejado. Béla Tarr explica de forma despojada a sua arte: “O meu cinema é muito simples, muito puro, acerca do peso das nossas vidas e de como acabamos por ficar cada vez mais fracos até desaparecer.” Apesar de ter chegado ao zénite da sua arte, decidiu voluntariamente afastar-se do cinema para sempre. Com apenas 58 anos, considera que já não quer, no futuro, arrastar-se por festivais a revelar um cinema cuja fórmula se repete. Em suma, Tarr está convencido que já mostrou tudo o que tinha a mostrar no cinema e, por isso, retira-se no auge do reconhecimento artístico internacional e com a consciência de ter concebido uma obra de qualidade irrepetível.

Se me perguntarem qual o melhor realizador vivo muito provavelmente respondo: Béla Tarr. No panorama do cinema de autor contemporâneo, Béla Tarr é o realizador mais talentoso e original. Mais do que Sokurov, do que Kaurismaki, do que Nuri Bilge Ceylan, o cineasta húngaro é o esteta por excelência, o visionário que desenvolveu uma linguagem visual própria (só filma a preto e branco), que abordou a deriva existencial do homem moderno em filmes fascinantes que construiu desde finais dos anos 70 até 2011. Os seus filmes são como poemas visuais em permanente estado de graça. Personagens cruas e paisagens desoladoras, histórias minimalistas e místicas (na senda da inevitável referência Tarkovski), fotografia absorvente e intrigante. Depuração plástica a toda a prova. Tarr é um estilista da imagem que joga com a luz e as trevas. E trabalha os movimentos de câmara com uma perícia e minúcia como mais ninguém faz hoje, procurando a essência do “tempo” tão cara a cineastas como Andrei Tarkovski, ou Michelangelo Antonioni.

Béla Tarr filma como se não existisse câmara, como se o olhar do espectador fosse a própria câmara. A forma como compõe a extraordinária “mise-en-scène” dos seus filmes e o modo como opera os longos movimentos de câmara (tem planos-sequência de 10 minutos) são estímulos para os sentidos. Gus van Sant é um admirador confesso do cineasta e realizou a magnífica “trilogia da morte” a pensar em Béla Tarr: Gerry (2002), Elephant (2003) e Last Days (2005) a pensar em Béla Tarr. Estas obras de van Sant são profundamente influenciadas pela estética do olhar do cineasta húngaro, tão prementes nos seus filmes Damnation (1988), ou Werckmeister Harmonies (2000). Béla Tarr é um dos realizadores mais radicais na opção pelo recurso do plano-sequência. Impressiona pela maneira como os seus filmes progridem como se se tratasse de um transe colectivo, que contamina os actores, a encenação e, por consequência, o espectador, desde que este se deixe envolver pelas histórias que se transformam em adágios visuais a preto e branco.

A obra de Tarr mais ambiciosa, bela, negra e épica é o filme Sátántangó (“Satan’s Tango“), com sete horas de duração. Um espantoso fresco moderno sobre a vida conturbada de uma família rural húngara. Não é um cinema fácil e de aceitação imediata, sobretudo, para os espectadores habituados à linguagem “videoclip” do cinema de Hollywood (ou de grande parte do cinema de Hollywood). O cinema de Béla Tarr é um cinema de estilo e austero, de muitas subtilezas visuais, de um ritmo pausado e de grande exigência formal que solicita do espectador uma atenção e assimilação especiais.

O seu último filme, estreado no festival de Cannes 2008, baseado num conto do escritor policial George Simenon, é o magnífico The Man From London, o primeiro filme a estrear comercialmente nas salas portuguesas. Béla Tarr é um assumido “outsider“, não tem site oficial, são raras as entrevistas que concede a jornalistas, não faz campanhas de promoção dos seus filmes. É um genial artista solitário e misantropo, como tantas das suas personagens dos seus filmes. Dedicou-se de corpo e alma à sua arte, durante toda a sua carreira.

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Voltando ao início sobre o seu legado cinematográfico chamado O Cavalo de Turim: durante 146 minutos o espectador fica submerso perante a belíssima – e ofuscante – fotografia, hipnotizado pela música repetitiva de Mihály Vig (compositor habitual do realizador), preso à vida rotineira do pai, da filha e do cavalo no campo, isolados de tudo e de todos. Pai e filha vivem do que transportam numa velha carroça e esperam durante 6 dias que o cavalo doente recupere para retomarem as actividades que os sustentam. O quotidiano é marcado por raras frases e acções monótonas sob uma ténue luz e dolorosos actos repetitivos. Porém, é nesses momentos monótonos, onde, aparentemente, nada acontece de diferente, que Béla comunica com o espectador. Tarr dá ao espectador tempo para observar e para pensar, porque este filme está repleto de ideias filosóficas, apesar da suposta banalidade narrativa.

É um filme perturbador pela aparente simplicidade formal, de uma grande exigência para o espectador comum: uma obra feita de pequenos detalhes visuais, de longos e hipnóticos movimentos fluidos de câmara, da crescente desagregação da relação entre pai e filha, da metáfora pessimista sobre o estado da humanidade (a partir de um episódio verídico protagonizado por Nietzsche), dos ruídos e silêncios, da escuridão súbita, do som do tenebroso vento constante… Tudo isto e muito mais é O Cavalo de Turim, um filme de uma intransigência estética sem paralelo no cinema contemporâneo, de um radicalismo irredutível, de uma beleza plástica sufocante, de um estilo narrativo minimalista que desconstrói a forma convencional de olhar para imagens em movimento.

Béla Tarr arquitectou um filme sobre o fim dos tempos, o vazio absoluto, um mergulho angustiante no coração das trevas mais profundas. Não há violência, não há terror, não há sangue, mas em cada imagem, em cada plano e movimento de câmara, pressente-se um terror insano, um desassossego da alma, uma sensação absoluta de solidão que nos leva ao âmago da essência da existência: ou seja, ao Nada. Todo o filme é assolado por uma espécie de caos calmo, pela proximidade fétida da morte, num mundo sem esperança e sem Deus que vai varrendo os restos de humanidade daquelas personagens. Um vizinho do velho diz-lhe: “A decadência do mundo foi provocada por seres maus, que tudo dominam, sem interferência de Deus. Os seres bons foram derrotados, ninguém mais os protege. Tudo está decadente, podre, em total desmoronamento. O fim está próximo”. Ver O Cavalo de Turim é sentir essa experiência-limite, quase física, quase abstracta, quase claustrofóbica, que provoca e incomoda, mas que não deixa ninguém indiferente.

O crítico de cinema Luís Miguel Oliveira escreveu sobre O Cavalo de Turim: “Magnífico e inesgotável. Vê-lo duas vezes é querer ver uma terceira.” E eis que esta frase se aplica, de igual modo, a todo o restante cinema deste cineasta excepcional.

Nota: a Midas Filmes editou em DVD no mercado português a filmografia integral de Béla Tarr.

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