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A nobre ousadia dos escritores

Escrever é um acto que pode ser acessível a todos. Como tocar um instrumento musical, uma vez aprendida a linguagem específica, ou pintar uma tela, conhecidos os materiais e as técnicas.

Escrever com arte, criar alguma coisa nova e sentir-se a diferença, pela marca do autor, pelo seu estilo muito próprio, pela pujança das palavras, a combinação das mesmas, a construção de frases que nos surpreendem pela inspiração única, e conseguir traduzir num texto, o que muito de nós tantas vezes sentimos ou pensamos, já não é arte ao alcance de qualquer um. E, talvez por isso, é arte. Genuína. Com a criação de novas frases e de uma história nunca antes contada, pode um escritor pretender deixar registo de um ou mais assuntos que sejam polémicos para a época em que vive, pretendendo com isso lançar alertas, abalar consciências adormecidas, sem se incomodar com a crítica ou a raiva que se levante contra ele, em pequenos grupos, ou por uma massa social gigantesca.

A escrita pode ser apenas uma construção para entreter almas tranquilas, ou pode no outro extremo da criatividade, pretender mover céus e terra para contribuir para a mudança social contemporânea. E tantos foram os autores que o fizeram, quase sempre deixando uma marca indelével. Alguns, ainda hoje quase marginalizados, deixaram a descoberto os mais elementares instintos humanos, com tremenda ousadia, mas nunca foram totalmente ostracizados, porque em muitas mentes, próximas ou idênticas à do escritor, a verdade por mais irreverente, por mais polémica, ou mesmo chocante, deve ser conhecida. E não raras são as vezes em que desconfiamos de uma coisa, de atitudes, de procedimentos, de comportamentos e ou nos ficamos pelo superficial conhecimento, ou nem suspeitávamos.

Foram os escritores, já há muitos séculos, que nos revelaram intimidades, muitas delas colectivas, como orgias, como comportamentos sexuais menos comuns, mas que não temos por que os estereotipar como “desviantes”, usando de uma moral que, precisamente, o autor quis denunciar como exagerada e inapropriada, injusta ou condenável mesmo. Porque é mais condenável um comportamento distinto do tacitamente aceite como correcto e moralmente adequado, do que o uso de uma moral que agarra a sociedade e o mundo a conceitos nunca interrogados, condenados por crenças e credos, elaborados por homens e mulheres como tantos outros, incluindo os “condenados ou socialmente rejeitados”?

Autores que denunciaram actos anti-humanos, cometidos por déspotas, como os de regimes totalitários, contra os quais iras se ergueram. Autores que ousaram escrever contra credos religiosos, pondo em causa a religião em si mesma. Serão tais autores condenáveis?

Recordemos Salman Rushdie, como podemos recordar, por motivos muito distintos, Marquês de Sade, ou Leopold Masoch. Mas também Tolstoi, em Ana Karenina, ou Guerra e Paz. Ou Emile Zola e Eça de Queirós. Ou Steinbeck. Mark Twain usou de um estilo muito seu, com humor e sarcasmo, para questionar crenças sociais ou levantar temas polémicos, no que muitos se riram, mas nem sempre entenderam o seu móbil.

A irreverência de tantos autores, como Boleño, como muito antes, D. H Lawrence no seu O amante de Lady Chatterley, ou Soljenítsin e o Arquipélago de Goulag, foi bem mais longe do que uma vontade de se fazer notar, antes pretendendo, eventualmente, como o conseguiram, levantar questões e corajosamente, instalar polémicas, para despertar mentes adormecidas ou mesmo amordaçadas.

Recentemente, Karl Ove Knausgaard escreveu uma autobiografia romanceada, em que se desvenda e aos seus, tal como é, numa atitude de coragem e numa escrita em tom irreverente. Porém, a Literatura é rica em obras e autores que usaram as palavras, com frequência eloquentes e de inalcançável beleza, para revelarem o que o mundo preferiria ignorar. E essas palavras, decisivamente, pouco a pouco, gota de tinta a gota de tinta, num papel, têm movido o mundo resistente à mudança, num sentido novo, mudando, a cada página ou a cada obra de um autor que nos marca. Que nos pode marcar para sempre.

Porque as palavras são ideias em forma sólida num papel e nem uma censura alguma vez conseguiu por definitivo apagar um pensamento e uma coragem que outros não tiveram. Um dos maiores exemplos é De rerum natura de Lucrécio, nascido cem anos antes de Cristo e que desvenda um conhecimento do mundo e das coisas inacreditável para a época. Uma obra censurada que passou pelos tempos e escapou a fogueiras que outras não tiveram a mesma sorte. Um exemplo maior da nobre irreverência humana. Afinal, da inteligência humana materializada em palavras inéditas e corajosas. Lucrécio não aceitava um Deus como depois milhões de humanos vieram a aceitar. Contudo, até sobre as suas palavras, outras mentes, castradoras, pretenderam distinto significado.

A natureza de um autor que usa da sua arte para nos chocar é um dos maiores legados da inteligência humana e um impulso mais no lento avança da nossa espécie. Um pequeno empurrão, por palavras, mas inequivocamente decisivo.

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