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A face humana da medicina

Não há profissão mais pessoal do que a do exercício de medicina. Os médicos mexem no que de mais precioso o ser humano tem: a saúde. Mexem nos corpos das pessoas, no seu estado emocional e seguram a vida e o futuro dos doentes nas suas mãos. Por isso, a maneira como os médicos tratam o doente, como educam os futuros médicos e ensinam a sua arte, aliada sempre ao seu saber-ser, são determinantes na sua completude. Por isso, em medicina, todas as decisões tomadas também são pessoais, porque se trata de pessoas. Caso contrário, o exercício da profissão está desfocado do doente. É que a medicina, preocupada apenas com o estado da arte, corre sérios riscos de se afastar da pessoa-doente, concentrando-se apenas na doença. E não há doença sem um corpo que a hospeda. E não há corpo sem um ser feito de emoções…

Quando a ordem dos médicos portuguesa veio recentemente anunciar o seu apoio à candidatura espanhola de elevar a “relação médico-doente” a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO, pressupõe-se que está apenas a cumprir uma mera formalidade… Pois, sendo a saúde o bem mais precioso do ser humano, intrínseca e naturalmente que é, sempre foi e sempre será, património da humanidade.

Compreende-se, no entanto, que a relação médico-doente esteja na ordem do dia. A rápida evolução da ciência e da tecnologia, os novos meios auxiliares de diagnóstico bem como a excessiva burocracia e procedimentos administrativos com que os médicos actualmente têm que se envencilhar, podem afastar o médico do doente, da pessoa que sente, que tem medo e que precisa da compaixão e empatia de quem trata da sua enfermidade, e não há tecnologia à face da terra que substitua a empatia e a compaixão no alívio do sofrimento. E muito menos a individualidade única de cada pessoa que sofre deve ser ignorada.

Este foi, aliás, o tema central do 20.º Congresso Nacional de Medicina, que decorreu no passado mês de Novembro em Coimbra. Mas será apenas uma moda esta exaltação na defesa da relação médico-doente? É que sempre houve doentes e médicos, e não é de agora que a empatia e a compaixão são fulcrais nas relações humanas. Nem é de agora que a [boa] relação médico-doente é fundamental para melhorar a qualidade e a humanização da medicina. É certo que 10-15 minutos para uma consulta médica só pode ser uma brincadeira de [muito] mau gosto do Serviço Nacional de Saúde, que põe em causa tudo, tudo mesmo. Porque este é quase o tempo mínimo para o médico introduzir os resultados dos exames no sistema informático, prescrever a receita médica e desejar “as melhoras” ao seu doente. E, de facto, perante tal absurdo levanta-se a questão das relações interpessoais. No entanto, cabe a cada médico encontrar o meio-termo entre o que o mandam fazer e o que a sua consciência dita. Até porque por detrás da bata branca há uma pessoa. Uma pessoa que sente. Uma pessoa que pode fazer a diferença na vida de alguém através da compaixão. Uma pessoa que também pode ficar doente.

Não obstante as vicissitudes dos tempos modernos, na relação médico-doente há uma coisa que nem a tecnologia nem os tempos das consultas médicas devem atrapalhar: a pessoa-médica, a pessoa que se coloca e coloca o seu conhecimento ao serviço das pessoas, que tem bom senso, que promove uma relação humanizada, meio caminho andado para motivar o doente no seu processo de cura. Se assim for está-se perante um ser humano que, apesar da sua competência técnica e da [necessária] distância de segurança que deve distar do doente, se complementa na sintonia da comunicação, na compreensão, na confiança e na compaixão em contexto de doença. Se tal acontecer está-se perante um “bom médico”, um verdadeiro médico. Mas, estarão todos os médicos empenhados nessa empatia que agora se preconiza? Como é que se força a humanização quando não existe tal sensibilidade na consciência íntima de um médico? Como é que se aprende a ter compaixão quando se é frio e até calculista? Como é que uma pessoa insensível se pode tornar sensível? Sabe-se que em todos os contextos há de tudo, mas em medicina a falta de sensibilidade é deveras torpe para quem está perante um ser humano debilitado. É então que a face humana da medicina se assume como condição essencial para o exercício desta arte, que é muito mais do que uma profissão.

O “bom médico” também sofre. É inevitável. Mas também fica feliz quando as coisas correm de feição para o doente. Encontrar o equilíbrio entre os aspectos técnicos e as emoções é um dos grandes desafios do médico, na medida em que, colocando sempre a saúde do doente em primeiro lugar mas não se envolvendo demasiado, possa estabelecer uma relação humanizada com o seu doente. Até porque ninguém é obrigado a ser médico, mas todos os médicos são – ou deveriam ser – obrigados a tratar o próximo como uma pessoa e não como uma doença. Se assim for, podemos encontrar um médico completo.

É preciso fazer aquilo que João Lobo Antunes afirmava: “pensar a medicina”.

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