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A escuridão sobre a aldeia

Na quarta-feira, às duas e meia da tarde, a escuridão caiu sobre a aldeia.

O Benjamin coloria com aguarelas um papel quase desfeito quando olhou o mundo pela janela. Mergulhou o pincel na água e observou a tinta espalhar-se como fumo. Também lá fora as sombras se derramavam até cobrir o Sol, as árvores, os pássaros, os telhados das poucas casas habitadas e das muitas abandonadas. Naquela escuridão que caía não havia estrelas nem lua, apenas frio e silêncio. Negro. Um gelo terrível de Inverno que nunca se tinha conhecido. Um manto que ninguém compreendia.

Não demorou muito até a aldeia ficar cega.

Com as mãos nas paredes, o Benjamin guiou-se até à sala e sentou-se no sofá. Tranquilizou-se com a luz azul e fininha da pequena chama do aquecedor a gás – a confiança do conhecido. O gato Aristides subiu-lhe para o colo e deitou-se.

“Faz frio na escuridão”, reparou a voz do avô.

O avô procurava velas e fósforos, as mãos trémulas a amarfanhar e desarrumar o que encontrava na gaveta. O som da vitória: os dedos a baterem numa caixa e os fósforos agitados. O fogo iluminou-lhe o bigode enorme, farfalhudo, a expressão entregue à preocupação e as rugas de quem viveu muito e se tornou imortal. Acendeu várias velas por toda a casa. As penumbras fingiam que fugiam. Na verdade, nem o aquecedor nem as velas eram capazes de expulsar aquele frio e aquele escuro tão reais quanto metafóricos. Ao lado do Benjamin, a avó Nina sentava-se de costas muito direitas, as mãos a torcerem-se nervosas e os olhos culpados, doridos e tristes metidos numas covas negras. Os mortos também têm olheiras? Retirou o olhar de cima dela, com medo de a perturbar.escurid

O Aristides correu para a invisibilidade quando bateram à porta. O avô levou uma vela para abrir. Esperava que a Miss Lola soubesse o que se passava, quando acabaria aquele mistério. À porta, a chama trémula mostrou a cara assombrada da bruxa, a carapinha escondida debaixo de um lenço verde, os dentes muito brancos e a mirada com a profundidade de quem sabe tudo e enlouqueceu. O Benjamin nunca percebera se deveria ter medo dela ou se bastava aquela curiosidade enorme que sentia. A Miss Lola disse:

“A escuridão não vai passar.”

A avó Nina aproximou-se e a atenção da bruxa virou-se para ela. A avó fitava-a como se quisesse mudar o tempo, mas a Miss Lola já só sentia o cansaço do que nunca tinha sido. Só o avô não via o espírito e entendeu que o silêncio da Miss Lola poderia ser um tratado de paz. Por isso, tocou com a ponta dos dedos na cara da bruxa. Ela afastou-se. O avô suspirou. Até o Benjamin conseguia ver como eles eram iguais, um espelho. Compreendiam-se onde mais ninguém se compreendia, havia entre eles uma conversa muda do que poderia ter sido e do que se perdeu.

“Preparem-se, que isto não vai passar”, voltou a avisar.

“Deve ser algum tipo de castigo”, murmurou o avô.

Ou algum tipo de final, pensou o Benjamin. Tinha ouvido na escola qualquer coisa sobre buracos negros e não duvidou de que o mundo tinha entrado num.

O avô segurou na mão da Miss Lola e pensou no sorriso da linda mãe dela, pensou na crueldade da mulher dele, e teve tanta pena a transbordar-lhe no peito que soluçou. Agora estavam as duas mortas, ele ficara sozinho com os restos podres das decisões erradas. De que é que adiantara aquilo tudo? Encaravam-se os dois, ele e a bruxa, aquele aperto de mão que pedia mais, que pedia tudo. Mas não havia solução para o que já passara. Alguns minutos depois, a Miss Lola retirou a mão dela da dele, baixou a cabeça numa despedida e foi-se embora. Não levou velas consigo, nem lanternas, nem lamparinas. Ela nunca precisou de ver para onde via, sempre soube o seu caminho.

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