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A criatividade não nasce, cria-se

Um momento é isso mesmo. Algo transitório, entre o que antes se fez ou viveu, bom ou mau e algo que se espera, sempre a desejar melhor e, por vezes, a adivinhar o pior, ou o menos bom. Porém, a efemeridade é, desagradável ou excelente e não a conseguimos agarrar, nunca.

E há momentos, todos eles diferentes, todos eles com algo, ou não em comum com outros, em que não se tem, nem se quer nada na cabeça. Pretende-se escrever, porque nos diverte. Isso mesmo, diverte. E também sabemos nos ser útil, desconfiando que a mais ninguém terá qualquer utilidade. O drama da “folha em branco”, hoje o drama da página em branco no processador de texto, é uma realidade e um mito, em simultâneo, e, claro está, o momento intervém, com a força brutal com que o Tempo nos deixa assim, entregues a nós mesmos.

Então, acontece que nos lembramos do processo criativo. Muitos acreditavam ser algo de inspiração superior, destinado a eleitos e vazio para os mortais mais comuns. Pode acontecer alguma coisa, no início desse caminho, como seja nos recordarmos de alguém que vimos, ou de uma conversa que ouvimos num café qualquer, numa qualquer localidade. Tanto qualquer terá algum conteúdo? Teríamos, então, de recriar, coisa descomplicada, e gerar os nomes de pessoas, locais e tempos. Depois, a grande maçada do conteúdo e a sucessão de frases e ditos de que não nos recordamos, mas que sempre se podem inventar.

Karl Ove Knausgärd baseou na sua vida uma autobiografia romanceada e adicionou-lhe narrativas que não saberemos cabalmente como lhe surgiram, mas de que desconfiamos quanto à sua veracidade. O resultado tem sido sempre uma delícia de acompanhar. Como terá feito um John Steinbeck em, por exemplo, A um Deus desconhecido, ou As vinhas da ira, ou mesmo nesses outros tantos livros seus que são hoje clássicos de uma luta política aguerrida e difícil há mais de setenta anos na América? E Hemingway, com as suas obras sobre a Guerra Civil de Espanha.

Espantoso como nos pode dar uma tremenda vontade de regressar a essas obras clássicas, ou a um Erich Maria Remarque e ao seu Arco do Triunfo, ou a A Oeste nada de novo. Passando, a seu tempo, pelo incontornável Albert Camus e à A peste, ou O estrangeiro. No entanto, tantos são os clássicos, que facilmente nos perdemos, tentando reencontrar memórias de dias de chuva como estes, estirados num sofá e aconchegados com uma manta, forçando os olhos a permanecerem abertos, deliciados com a magia de frases que nunca seremos capazes de imitar, ou sequer de perto de uma tal qualidade andarmos. E nem quero pensar na profundidade de cada frase de Herman Hesse, em Siddhartha, ou O Lobo das Estepes, o Jogo das contas de vidro e outros.

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A leitura em dias de chuva é uma necessidade e um prazer acrescido e pode ser o tónico que falta para começarmos a juntar palavras e cumprir, como dizia Kipling (porque uma pequena gota de tinta ao cair num papel pode fazer com que milhares de pessoas, talvez milhões, pensem) com um desejo de quem escreve. Ser lido. Contudo, escrever sem saber onde começar e nem antever onde se irá dar é um jogo perigoso.

Em dias de chuva e de avisada tempestade, melhor mesmo é visitar a estante dos livros esquecidos. Que tal ler, ou reler, um Roberto Bolaño e a 2666? Ou Cortázar com o seu Rayuela? Pelo menos com estes a cabeça ia ter que se esforçar e já não nos metíamos a descobrir como ultrapassar dias de humidade depressiva lá fora e de eventuais frustrações, cá dentro?

De facto, estes dias regressam-me ao passado das minhas primeiras leituras, com o épico A leste do paraíso de Steinbeck, O espião que saiu do frio de Le Carré, ou uma das minhas aventuras mais difíceis, aos quinze anos, A vigésima quinta hora de Georghiu, onde me choquei com o drama dos Judeus em campos de concentração.

Uma leitura pode substituir uma ausência de ideias e uma “branca” para escrever, quando se tem o impulso e a tremenda vontade, mas a cabeça anda por outras bandas e a página continua em branco.

A inspiração dos criadores talvez até exista. A criatividade pode ser distinta em todos nós. Porém, a acumulação de histórias, estilos e géneros e a aprendizagem que com tudo isso fazemos, é o ponto de partida mais comum a todos os que nos deslumbraram com textos únicos e irrepetíveis. Não se escreve sem termos sofrido muitas influências, não se pinta sem que a cabeça procure padrões memorizados descobertos na aprendizagem com quadros de famosos. Provavelmente nunca Beethoven teria composta o que hoje conhecemos, que se tornou uma obra única pelo conjunto e pela total irreverência e originalidade para a época, se não tivesse conhecido um Mozart, um Salieri e com eles e Haydn iniciado todo uma caminhada e penetrado num mundo reservado a alguns apenas. Aos que se atrevem.

E é a esse atrevimento, que pomos com facilidade numa receita de um doce, quando a alteramos, ou reinventamos, que se deve a criatividade que nos parecer ser a inspiração dos génios.

Num dia como o de hoje, com a chuva do lado de fora e o nevoeiro dentro da cabeça, uma limpeza feita com uma viagem pelos grandes autores é o início desse atrevimento que tudo muda.

O arrojo e a coragem de criar começa sempre num momento. Num momento qualquer.

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