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A amarga sensação de sermos do mundo

Hoje em dia fala-se muito de viagens. Está na moda. Há quem consiga pôr na mala de 4 rodas o desejo de conhecer o mundo. Há outros que a loucura ocupa tanto espaço que torna o desejo de partir leve e, então, duas chegam.

E depois temos os mais inovadores mochileiros. São poucos os que se desprendem das rodas, metem os litros que conseguem às costas e deixam que a lombar os guie. Cancelam o hostel e são livres de não levar bolsinha da higiene. Não têm o pequeno-almoço incluído e o bufê fica guardado para o próximo casamento a que forem convidados. Se mais algum dia voltarem a ser.

Começaram o percurso das suas vidas ainda em adolescentes com um gap year. Desataram as primeiras lágrimas sentidas de saudade e deixaram que os diferentes trilhos os conduzissem. Pensaram na hipótese de serem hospedeiros ou comissários. A questão de não chegarem a tempo de constituir família não os assustava. A solidão já fazia parte do quotidiano. E sozinhos
sentiam-se acompanhados.

Perderam a noção da quantidade de milhas que tinham percorrido com os próprios pés, no momento em que perceberam que a sola do sapato não descolava dos dez dedos sujos que tinham. Faziam o próprio caminho, caminhando.

Deixaram muitas vezes o caixote onde estavam hospedados por uma reunião na outra ponta da cidade. Com eles levavam o fato engomado e as calças com o vinco do último cão que lhes tinha feito uma surpresa durante a noite. Desproviam-se das chamadas malas de negócios, onde costumam estar guardados maços e maços de notas. Na verdade, a única coisa que tinham
como propriedade eram eles próprios.

Tinham histórias incríveis de noites onde o céu demasiado estrelado lhes tinha proporcionado uma noite em branco. Lembravam-se de todas as vezes em que o reboliço da noite da capital proporcionava fogo de artifício com material cortante. Podiam ter escrito mil e um livros, se a caneta com que saíram de casa ainda tivesse tinta. Se as palavras ainda fossem desejadas por outrem.

De facto, tinham na memória tudo bem assente desde do dia em que deixaram de ser olhados direito nos transportes. Quando ainda andavam de transportes sem medo de ser retribuído mais uma multa que lhes custava a vida.

Não publicavam nas redes sociais as suas aventuras pelos novos monumentos históricos que tinham visitado durante os últimos anos. Porque a tasca era sempre a mesma. A porta do supermercado com a garrafa de plástico cortada na mão estava já garantida e o final do dia terminava sempre na mesma rua. A Augusta. Davam  o seu melhor, mesmo que para isso fosse preciso estar horas a desejar o ponto negro da senhora que quis levar uma caricatura sua para casa.

Privavam-se da publicação da banheira improvisada que o hotel permitia. Porque nem sempre chovia. E nem sempre existia a possibilidade de dar uso aos produtos que tinham ficado em casa esquecidos desde então.

Viviam cada dia como se fosse o último. A esconderem o cartão da fruta, as mantas e a almofada nas esquinas das estruturas da cidade melhor preparada para receber turistas. Lisboa.

Viam a ponte ao longe, como se fosse o porto de saída para o salto de paraquedas que precisavam de ter nas suas vidas. Mesmo que para isso implicasse um mergulho de cabeça na salgada água do rio. Também que mal teria? Das últimas vezes que tinham comido tinham-se queixado que a comida estava insonsa. Iam afogar as mágoas em sal, no sentido bem literal.

É isto.

Hoje não falo da minha última viagem, nem do quão feliz fui em todas elas. Destaco antes a atenção para os Eziqueis, Beneditos e todos aqueles que deixaram de poder ser turistas e passaram a fazer da vida turismo rural. Sim, não disse Harry nem William, porque esses dificilmente terão este desprazer.

Aos que deixaram de ter nome próprio. Aqueles que são lembrados só em alturas onde o bacalhau cozido está em cima da mesa. Daqueles que tem igual medo de voltar a casa como tiveram no momento da partida.

Falo dos que são mais do mundo do que deles próprios. O meu respeito, porque vocês sim fazem da vida uma viagem.

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